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A série do Jornal Nacional mostra o documento que é um exemplo até para a Constituição brasileira, promulgada em 1988. "Brasil em Constituição": Carta Magna do Reino Unido é símbolo da luta por direitos civis e liberdadeO Jornal Nacional estreou, nesta semana, uma série especial de reportagens sobre a Constituição, o papel fundamental que ela tem na garantia dos direitos de cada cidadão e da própria sustentação do regime democrático. Mas antes de mergulhar nos artigos que asseguram essas conquistas dos brasileiros, é preciso examinar as origens da Constituição, olhando exemplos de outros países.A reportagem desta terça-feira (30) é sobre um dos primeiros documentos da história a refletir a luta pela liberdade, um texto considerado símbolo da conquista de direitos civis e um exemplo até para a Constituição promulgada em 1988 no Brasil.É uma preciosidade e está muito bem guardada junto com os ideais de justiça e igualdade: a Carta Magna do Reino Unido. Hoje só restam quatro cópias originais da Carta Magna. A mais bem preservada fica em uma catedral na cidade inglesa de Salisbury, em uma sala escura. Em 2018, um cidadão tentou roubar a Carta Magna. Deu uma martelada, mas foi preso. “O Reino Unido não tem uma constituição escrita e sistematizada, tem documentos de importância constitucional, evidentemente, a Declaração de Direitos de 1688, a Magna Carta, que têm um valor até mais simbólico do que efetivo, de 1215. Lá se vai bastante tempo. E, no entanto, ela é bastante conhecida por todo mundo”, explica o professor de Direito Constitucional da UniRio José Carlos Vasconcellos. Puxando o fio da meada, voltamos "um cadinho no tempo", até o século XIII. “Naquela época estavam pressionando o rei, que vinha de guerras com a França em que ele tinha perdido muitos territórios. Para fazer a guerra você precisa de dinheiro, para conseguir dinheiro você precisa taxar, e quem tinha dinheiro eram os barões. Era uma época muito conturbada e, finalmente, em 1215, o rei foi quase que obrigado a assinar a Carta Magna das Liberdades”, explica o professor de Direitos Humanos do King"s College de Londres Octávio Motta Ferraz. A mensagem mais importante dessa carta é que nem o rei está acima das leis. Na realidade, as razões que motivaram esse pequeno grupo de poderosos nem eram tão nobres assim. O interesse deles era resolver conflitos econômicos, mas as letras e o espírito daquela época se encontram em um memorial. O rei João selou o documento em Runnymede, em um campo perto de Londres. Mais de 800 anos depois, a força da palavra escrita se mantém firme. A Carta Magna tem um valor que vai além do seu próprio tempo, virou símbolo da conquista de liberdades civis em busca da igualdade, e o significado do que fizeram tanto tempo atrás inspirou grandes momentos da história. “Existe uma ligação direta da Carta Magna de 1215 e os documentos modernos de direitos humanos, as constituições, os tratados internacionais”, diz Octavio Ferraz. No século XX, depois da Segunda Guerra Mundial, foi a vez de colocar no papel a definição do que seriam os direitos humanos. “A Eleanor Roosevelt, que era a mulher do Franklin Delano Roosevelt, o presidente americano que faleceu logo depois da guerra, capitaneou a elaboração da Declaração de Direitos Humanos de 1948 e ela falou a famosa frase: "Eu quero que essa declaração se torne uma Magna Carta para toda a humanidade". Então foi só ali que a ideia se estendeu a todos. Essa ideia pode se expandir e incluir direitos novos, como o direito à saúde. Então ainda que não haja em nenhum lugar nas 63 frases da Carta Magna dizendo que a saúde é um direito, eu acho que no espírito a gente pode, sim, fazer uma ligação com aquele documento e esses direitos sempre podem se expandir de acordo com o desenvolvimento das sociedades humanas e das necessidades de cada período”, aponta Octavio. Toda essa história nos trouxe até os dias de hoje. Maria Lúcia Possas mora em Londres há mais de 20 anos e trabalha com pesquisa no sistema público de saúde britânico. Até que provem o contrário, foi a primeira brasileira vacinada contra a Covid no mundo, antes mesmo da rainha. “A lei é para todos. A gente chegou a um ponto onde uma pessoa como eu pode tomar a vacina antes da rainha Elizabeth”, afirma Maria Lúcia. Mas, afinal, o que o direito à saúde, o espírito da Carta Magna, as guerras, a realeza, os direitos humanos, os séculos, a dignidade e o respeito pelas pessoas têm em comum? A resposta pode estar no quintal de uma casa inglesa. Tom Moore esteve na linha de frente contra o nazismo, viu a ONU declarar os Direitos Humanos e encarou uma maratona para ajudar as pessoas no auge da pandemia de Covid. Ganhou a admiração da rainha e deu exemplo para as futuras gerações. Ao lado da família, o novo herói nacional comemorou o resultado da campanha. “O fato dele ter arrecadado tanto dinheiro, eu acho que tem a ver com isso, porque ele simplesmente comoveu todo mundo”, afirma Maria Lúcia. Tom viveu até fevereiro do ano passado, 100 anos. Com a palavra o neto de Tom: “Eu acho que para o meu avô e a geração dele o importante foi a liberdade. Eles lutaram na Segunda Guerra Mundial, libertaram nosso país do que poderia ter sido uma desgraça causada pela Alemanha. Poderíamos ser pessoas diferentes. Acho que essa geração e o meu avô resumem exatamente o que é liberdade, e espero que isso continue pelas próximas gerações no Reino Unido. Acredite sempre que podemos lutar contra o que vier, e que lutemos juntos e estejamos unidos. Vamos fazer de tudo para que o legado do meu avô continuar vivo”, afirma Benjamin Ingram-Moore. Conquistas alcançadas ao longo de séculos exigem trabalho, todos os dias. Em Londres, o palácio de Westminster, reúne a Câmara dos Lordes e a Câmara dos Comuns. É o Parlamento do Reino Unido, que trabalha para garantir que a tradição inglesa se mantenha firme, sem a interferência de reis e rainhas.E observar os exemplos de outros países trouxe ensinamentos para os parlamentares brasileiros. No Congresso Nacional, deputados e senadores da Assembleia Constituinte ouviram toda a sociedade e decidiram os princípios fundamentais que guiariam o nosso país de 1988 em diante. Os sistemas são diferentes, mas o objetivo é o mesmo: fortalecer a democracia. “A Carta Magna é um documento importante. E um dos principais direitos, ou uma das principais garantias, se quisermos, desta Carta Magna de 1215 foi estabelecer que ninguém pode ser processado ou condenado sem o devido processo legal. Esse é um princípio que se transformou num princípio universal, e como foi o primeiro documento escrito na história do constitucionalismo em que um governante assegurou direitos e garantias à população em geral, dizem que esta Magna Carta é um paradigma, é um exemplo, é o modelo para todas as constituições que surgiram depois”, explica o ministro do STF Ricardo Lewandowski. Até a nossa Constituição Cidadã, de 1988, traz em si toda essa história. “Uma coincidência muito interessante que existe entre a Carta Magna de 1215 e a nossa Constituição de 1988 é que na Carta Magna, o artigo 39 fala que nenhum homem livre vai ser preso, detido, despossuído ou incriminado sem uma lei anterior que defina esses crimes. E o artigo 5º, também inciso 39 da nossa Constituição, ele diz, literalmente, que não há crime sem lei anterior que o defina. Então, é praticamente a mesma coisa que um documento de mais de 800 anos”, conta o professor Octavio. “Séculos e séculos e séculos de luta para a gente conseguir chegar em um lugar que a gente está de certa forma hoje. Quantas guerras tiveram até a gente conseguir pouquinho, a pouquinho, algum progresso em direitos humanos? É importante a gente parar para pensar, às vezes, quando você vê tanta gente querendo sabotar a democracia. Eu acho que é importante a gente lembrar que esses direitos foram conquistados com o suor e sangue de muita gente. É uma coisa que a gente deveria dar mais valor do que dá”, diz Maria Lúcia. Esse patrimônio está em nossas mãos e cabe a cada um de nós fazer valer as conquistas dessa história.