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Escassez de dólares na Bolívia está impactando a inflação — e a população já está sentido os efeitos de mudanças no quadro econômico. Diante da escassez de dólares na Bolívia, loja anuncia que compra a moeda americanaBBC News BrasilApesar de ser um dos países mais pobres da América do Sul, a Bolívia conseguiu controlar a alta dos preços dos alimentos mediante políticas públicas implantadas nos últimos 15 anos que visavam abastecer o mercado interno e romper com o ciclo inflacionário que atinge diversos países da América Latina.Agora, contudo, o alto déficit na balança comercial, semelhante ao que a Argentina passa há anos, faz com que o país atravesse uma crise que torna escasso os dólares na economia boliviana.Isso impacta a inflação, cujo índice anual chegou a 5,5% em setembro — patamar elevado para os padrões bolivianos e que já desperta irritação na população local, em meio a disputas políticas no governo.Este foi o maior nível desde 2013, quando a inflação teve um pico de 6,48% no acumulado anual.? Clique aqui para seguir o canal de notícias internacionais do g1 no WhatsAppDesde 2015, a Bolívia acumula seguidos déficits fiscais. A situação, contudo, piorou desde 2023, com a queda do volume de gás vendido para fora do país. Esse é o principal item de exportação do país. Por isso, desde o ano passado, o país precisou recorrer às reservas internacionais para subsidiar o preço dos combustíveis, que é importado.Os subsídios, que vão dos alimentos às empresas que importam diesel e gasolina, e custam cerca de US$ 4 bilhões por ano, passaram a pesar na conta — com o governo gastando mais do que arrecada."Trata-se de déficits fiscais de uma média de 8% do PIB [Produto Interno Bruto], uma queda nas receitas fiscais e, obviamente, nas reservas do Banco Central, que foram queimadas e se tornaram um dos mais importantes financiadores do governo", afirma o economista Jaime Dunn De Avila, mestre em administração de empresas pela Universidade Católica Boliviana.Tentando manter seu programa social e econômico, o governo de Luis Arce passou a utilizar as reservas oficiais de dólar. Com isso, houve baixa das reservas, que passaram de US$ 15 bilhões em 2015 para US$ 1,9 bilhão agora.Desde o ano passado, o governo também restringiu saques na moeda estrangeira e compras no cartão de crédito, buscando segurar mais divisas em solo boliviano.Mesmo assim, com as reservas baixas, o país não consegue mais controlar a variação da moeda americana, que disparou no mercado paralelo. "As reservas internacionais bolivianas se reduziram para algo próximo ao nível do colapso", completa o economista."Ficou mais difícil para o país importar até produtos essenciais, como alimentos e remédios, com a consequente falta de mercadorias e aumento de preços."'Os preços sobem muito e o nosso salário é muito baixo', diz Maria de Lourdes, que vende produtos alimentícios nas ruas de La PazBBC News BrasilA população sofre com a escassez de combustíveis, principalmente do diesel. Há também filas para conseguir alimentos básicos subsidiados, como arroz e farelo de trigo.Além disso, tensões políticas entre Luís Arce e o ex-presidente Evo Morales, ex-aliados que disputam o controle do partido no Movimento ao Socialismo (MAS) e a possibilidade de disputar as eleições no ano que vem, afastaram investidores estrangeiros.Pelas ruas de La Paz, comerciantes buscam dólares e anunciam a compra da moeda americana."Preciso de dólares para importar mercadorias e, também, porque não confio mais no governo", diz o comerciante José Ignacio."Por isso, para me proteger, vou guardar dólares por aqui antes que os preços disparem como na Argentina."Alex Nery, professor de economia da FIA Business School, explica que a escassez de reservas cambiais, que agora ocorre na Bolívia, permanece como um dos grandes desafios da economia argentina."A falta de reservas dificulta a defesa da taxa de câmbio em momentos de crise e aumenta a desconfiança dos agentes de mercado internos e externos em relação à moeda local", diz Nery. "[Na Argentina] a desvalorização do peso tem impacto direto na inflação, pois aumenta os custos de insumos importados e eleva os preços de bens de consumo, especialmente em uma economia que depende de importações", completa.LEIA TAMBÉMMacron acusa esquerda e extrema direita de conluio e reafirma que permanecerá no cargo até o fim do mandatoAtirador que matou CEO de seguradora em Nova York deixou mensagem em munição, diz agência; polícia divulga foto do atiradorRússia mostra treinamento de soldados para uso de mísseis portáteis; VÍDEOInflação em altaPreços de alimentos básicos são tabelados pelo governoBBC News BrasilOs desajustes macroeconômicos já se refletem na vida da população da Bolívia. A Bolívia historicamente tem uma inflação mais baixa do que outros países da América Latina, onde a alta dos preços é um problema frequente. Nos últimos quatro anos, de 2020 a 2023, o país teve uma alta acumulada de 6% no índice oficial de preços. No Brasil, o aumento foi de cerca de 25% no mesmo período.Maria de Lourdes, que vende produtos alimentícios nas ruas da capital boliviana, reclama da alta dos preços durante o governo de Luis Arce. Por isso, ela toma lado na disputa política no MAS e afirma que apenas o retorno de Evo Morales ao poder poderia fazer com que o país retome o caminho do crescimento e o controle dos preços."Os preços sobem muito, e o nosso salário é muito baixo. Espero que Evo volte, para que nossa vida volte a melhorar como na época dele", diz.Para Alexis Dantas, professor de ciências econômicas na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), o país poderia optar por iniciar um controle cambial mais rígido para conter a alta da moeda e seus efeitos negativos."O mais razoável, para o país, seria o controle cambial, à medida que os exportadores não podem fazer outra coisa se não exportar, sobretudo na questão mineral, e assim você consegue controlar o curto prazo e pode relaxar essas medidas ao longo do tempo", diz. "Mas há uma pressão forte do sistema financeiro", reconhece.Já para Jaime Dunn De Ávila, o problema é justamente o excesso de controle sobre a economia do país. "A crise cambial na Bolívia é, na verdade, resultado de um problema real, que começou a ser criado aos poucos desde 2014, quando as receitas das exportações de gás para a Argentina e o Brasil significaram mais de US$ 5 bilhões para o governo boliviano", diz."Mas isso acabou, e o governo manteve as despesas crescentes, enquanto as receitas diminuíram, o que nos conduz claramente a uma crise."O presidente Luis Arce admite a crise de dólares, mas vem negando o impacto econômico na vida cotidiana do boliviano. "Como vários países, temos certas dificuldades na disponibilidade do dólar, mas não estamos numa crise econômica estrutural como a oposição pretende posicionar-se para gerar uma crise política e encurtar o nosso mandato", disse Arce durante discurso neste ano.O ministro da Economia e Finanças, Marcelo Montenegro, afirmou à rede France 24 que "haverá um aumento de divisas" na economia com as exportações agrícolas que foram atrasadas devido aos problemas climáticos.Plano de alimentaçãoBolivianos fazem fila em frente a unidade da Emapa na cidade de Copacabana, na fronteira com o PeruBBC News BrasilParte do sucesso de um período não muito distante no controle de preços e no abastecimento do mercado interno veio com a fundação da Empresa de Apoio à Produção Alimentar (Emapa) e do Fundo Rotativo de Segurança Alimentar.Essas entidades importam alimentos usando recursos públicos e fomentam o pequeno produtor que não cultiva commodities para exportação. Depois, fazem a distribuição desses itens em mercados estatais, para manter os preços.A Emapa, criada em agosto de 2007, é um órgão estatal que tem por objetivo assegurar a "segurança alimentar com soberania". Na prática, a empresa compra de produtores locais, mantendo um nível de demanda constante, o que fomenta a produção de alimentos não voltados à exportação, como a soja, e vende em supermercados próprios, com preços subsidiados aos moradores."O ex-presidente Evo Morales e o atual, Luis Arce, combinaram uma série de medidas que mesclaram liberalismo e desenvolvimentismo, como zerar tarifas para a importação de alguns tipos de alimentos e criar uma empresa pública, a Emapa", diz Maurício Santoro, doutor em Ciência Política pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos (Iuperj). "Essas decisões foram tomadas no contexto de um pico inflacionário de alimentos e de muitos conflitos sociais e políticos na Bolívia, no fim da década de 2000." Turistas são autorizados a comprar nesses supermercados, que restringem apenas os produtos básicos e subsidiados pelo governo, como o arroz e farelo de trigo. "Os turistas vêm sempre aqui dar uma olhada e comprar produtos. Alguns se interessam pelos baixos preços, mas sempre explico que somente pessoas cadastradas podem comprar alguns itens", afirma à BBC News Brasil Carla Santí, que trabalha como caixa na unidade localizada na cidade boliviana de Copacabana, próximo da fronteira com o Peru.Além da Emapa, há ainda o Fundo Rotativo de Segurança Alimentar, que importa alimentos usando para isso recursos públicos e distribui nesses mercados para manter os preços baixos. Logo após a pandemia, por exemplo, a BBC News Brasil reportou que o fundo injetou 10 mil toneladas de farinha de trigo no mercado para evitar o aumento do preço do pão.O governo de Luiz Inácio Lula da Silva tentou fazer algo parecido com o arroz à época das inundações no Rio Grande do Sul, mas não conseguiu por problemas em leilões para comprar arroz de produtores internacionais. O ministro da Agricultura, Carlos Fávaro, afirmou que o governo não faria outros certames dado que o preço do arroz já estava de volta aos patamares anteriores à tragédia climática.Outro pilar importante dentro do controle da inflação dos alimentos na Bolívia é o preço dos combustíveis, responsáveis pelo transporte da produção à mesa do consumidor. Por lá, o abastecimento é considerado como serviço público e o Estado mantém o controle da produção, subsidiando os preços à população local.As medidas fazem efeito. Se entre 2010 e 2015, o preço dos alimentos subiu cerca de 55%, nos últimos cinco anos a alta foi de somente 10% no acumulado, de acordo com o Instituto Nacional de Estatística da Bolívia (INE) — mesmo com a pandemia de covid-19, que fez com que os preços dos alimentos subissem no mundo.O controle de preços praticado pelo governo boliviano, contudo, se difere do congelamento de preços praticados no Brasil durante o governo de José Sarney, ou pelo governo argentino em diversos períodos da história.Segundo explica Alex Nery, essas experiências anteriores no Brasil e na Argentina impuseram um teto para os preços de alguns bens e serviços — somente isso, sem uma abordagem mais complexa."Este método tenta conter a inflação diretamente, mas tem se mostrado ineficaz ao longo da história porque ele não combate a causa da inflação, mas apenas uma de suas consequências, que é o aumento generalizado nos preços", diz o professor da FIA Business School."Quando adotado, frequentemente provoca escassez de oferta, na medida em que desestimula a produção ou importação dos bens cujos preços foram congelados ao reduzir a rentabilidade dos produtores."Nery afirma que a prática boliviana recente é diferente, pois vem acompanhada de políticas para aumentar a oferta dos itens no mercado e para manter a competição. Ele cita o Fundo Rotativo de Segurança Alimentar. "Há exemplo do uso desse fundo para importar toneladas de farinha de trigo com o objetivo de manter estável o preço do pão. A diferença entre as duas situações é que, no caso do Brasil [no governo Sarney], trata-se de uma medida pontual para tratar de uma crise de abastecimento momentânea, enquanto no caso da Bolívia há uma política permanente que objetiva combater a inflação", afirma. VÍDEOS: mais assistidos do g1