Após ser eleito, Milei nomeou para o governo pessoas ligadas a políticos que sempre criticou. Além disso, precisará negociar muito com o Legislativo — e possivelmente fazer concessões— para aprovar medidas. Javier Milei, que foi eleito presidente da Argentina
Reuters
O presidente eleito Javier Milei toma posse neste domingo (3) na Argentina para um mandato de quatro anos, e uma pergunta se impõe: qual é o Milei que irá governar?
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O "utópico", influencer ultraliberal e libertário que ganhou notoriedade com um discurso antipolítica, ou uma versão mais pragmática, que fará concessões e negociará com pessoas de outras correntes ideológicas para aprovar reformas no Congresso?
POSSE DE MILEI: veja quem irá comparecer?
Os sinais são ambíguos: enquanto o Milei da campanha se apresentava como um político da direita não tradicional que vociferava contra a "casta" política, o Milei eleito tem se aproximado de nomes do establishment e montou uma equipe composta tanto por egressos do governo de Maurício Macri, de direita, como de Alberto Fernández, de esquerda.
"Não sabemos como será ele no governo. No período do segundo turno houve uma transição muito relevante de estilo e de agenda", diz Federico Zapata, diretor da consultoria argentina Escenarios.
Milei, afirma o analista, montou um governo mais plural do que se imaginava: além de políticos do partido de Macri, o Proposta Republicana, há alguns peronistas não-kirchneristas, caso de Daniel Scioli, o embaixador da Argentina em Brasília, que permanecerá no cargo.
Zapata diz que os eleitores de Milei não o abandonarão por essas nomeações, nem mesmo se o novo presidente deixar de lado algumas das promessas de campanha: entre elas está dolarizar a economia argentina e fechar o Banco Central.
"Eles não vão se sentir traídos; eles têm uma relação afetiva muito forte com Milei, ele os fidelizou e a consegue fazer essas mudanças de rumo se for necessário", diz o consultor.
Diferenças em relação a Bolsonaro
Autor do livro "A nova direita argentina e a democracia sem política", o professor Sergio Morresi, da Universidad Nacional de General Sarmiento, afirma que Milei tem se moderado em relação ao discurso de campanha, embora ainda mantenha a raiz radical.
Morresi afirma que a direita tradicional e a direita antissistema na Argentina têm se aproximado. A tendência do movimento, porém, é em direção ao extremo, não ao centro.
Em relação ao governo do presidente Jair Bolsonaro no Brasil, ele vê contextos diferentes.
Aqui, havia expectativa de que o presidente se moderasse ao longo do mandato, o que não ocorreu. Bolsonaro, além disso, tinha apoio consistente nas Forças Armadas e conquistou parte do empresariado. Na Argentina, por outro lado, as Forças Armadas não têm o poder e a influência como no Brasil, e Milei não atraiu tantos empresários como Bolsonaro.
Apoio no Legislativo
O partido de Milei não tem maioria na Câmara dos Deputados nem no Senado, e vai precisar do apoio de outros partidos.
Isso é semelhante ao que acontece no Brasil, mas a organização política da Argentina tem diferenças marcantes em comparação com a nossa.
A principal delas é que, na Argentina, a eleição para o Legislativo é em lista fechada —ou seja, os dirigentes de partido controlam quem estará no topo da lista e no fim da lista. Na prática, os "chefes" de partido das províncias têm mais poder de barganha com o Executivo nacional.
"O presidente é obrigado a barganhar com governadores, e é isso que o Milei está fazendo. Ele tem que negociar com as lideranças do peronismo não kirchenerista e da direita tradicional, mas também vai precisar negociar com governadores", diz Morresi.
Segundo o pesquisador, a estratégia de Milei tem sido "fechar a porta na cara" dos governadores para depois negociar uma abertura. Ou seja, ele afirmou que não vai haver verba federal para obras em províncias para depois negociar isso em troca de apoio parlamentar.
O professor afirma que, entre os apoiadores de Milei. há pessoas que acreditam que a vitória no segundo turno foi tão significativa que os legisladores vão ter receio de se opor às políticas do novo presidente e vão se alinhar só por essa razão. Morresi vê essa possibilidade como pouco provável.
A Liberdade Avança (LLA), partido de Milei, tem 40 das 257 cadeiras da Câmara dos Deputados e 7 dos 72 assentos do Senado.
O peronismo tem 105 deputados e 33 senadores,
Entre os prováveis aliados que Milei na Câmara está o partido do ex-presidente Mauricio Macri, com 40 cadeiras, e, talvez, a União Cívica Radical, com 35.
E aquelas propostas?
Para os analistas políticos, algumas reformas econômicas na Argentina, como da moeda, seriam feitas por quem quer que fosse o presidente.
"Parece que a sociedade vai dar um período de tempo para que ele consiga fazer reformas. A questão é se ele vai ter maioria legislativa e se essas reformas vão surtir efeitos que permitam que ele consolide poder político", afirma Zapata.
Antes de ser um político, quando era influencer ultraliberal, Milei falava em dolarização e fechamento do Banco Central. Morrei coloca isso em contexto.
A dolarização
O discurso mais tradicional de Milei sobre o dólar não é exatamente impor uma conversão entre peso e dólar ou passar a usar o dólar como moeda corrente no país, como é, por exemplo, no Equador. A ideia é liberar transações com o dólar --hoje há diversas proibições legais, que os argentinos chamam de "cepo", para que se use o dólar como referência de valor. É proibido, por exemplo, fazer contratos em dólar.
A ideia de Milei é tirar todas essas proibições. A lógica é que as pessoas vão passar a pensar e dar preços às coisas em dólares e, na prática, a economia vai caminhar para uma dolarização.
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O fechamento do Banco Central
Segundo o pesquisador Sergio Morresi, Milei realmente acredita mesmo na ideia de fechar o Banco Central. "Ele diz isso nos livros e artigos antigos". Mas também há uma sutileza. A ideia é, acima de tudo, acabar com as funções de regulador de mercado financeiro que os Bancos Centrais têm. Grosso modo, Milei quer um mundo financeiro mais livre, com circulação de diferentes moedas e menos intervenção no sistema financeiro.
"Quando ele falava isso ainda no mundo utópico, esse seria um ideal. Desde que ele virou político, ele continua falando isso, mas ora vai para um lado ora para outro", afirma o pesquisador.