Cantora paraibana reflete sobre sua trajetória enquanto artista, que tomou forma com o lançamento de seu álbum em maio de 79 e hoje segue permeando gerações. Cátia de França conta sua história e celebra os 42 anos do seu disco 20 palavras ao Redor do Sol
Divulgação/José de Holanda
Na insistência de quem sabe o que quer, Cátia de França lançava o 20 Palavras ao Redor do Sol em maio de 1979, denunciando a rebeldia do Nordeste, questionando um Sertão bem masculino e elevando seu espaço enquanto artista. 42 anos depois, o disco ganha um relançamento pela Três Selos e a cantora reflete sobre sua trajetória como uma das vozes e composições mais potentes da música popular brasileira. "Um atestado de que minha música é eterna", disse ao G1.
Apesar de sua grandeza, Cátia é humilde ao falar que o disco na verdade não começou nas gravações no Rio de Janeiro, mas na Rua Almeida Barreto, no Centro de João Pessoa. “Na maioria das histórias das pessoas, tem que falar da mãe. É na mãe que começa tudo", fala a cantora ao agradecer a presença da literatura em sua vida, fruto de muito incentivo da sua mãe Adélia de França.
Primeira professora negra da Paraíba, ela alfabetizou Cátia cantando. A artista começou aos quatro anos com o piano que a mãe deu, para despertar o amor. Além disso, o instrumento na época era muito chique para as moças. “Introduzir sem sentir; quando vê já foi (...) quando ela viu que eu tomei gosto aí pronto. Mas só fui ganhar o piano definitivo que tenho até hoje aos 12 anos, que ela comprou com o salário de professora, já pensou?”.
Além dos discos de Luiz Gonzaga e Jackson do Pandeiro, os livros também foram uma forte presença e uma de suas maiores alegrias era quando eles chegavam pelos correio. O pai não gostava muito da questão da música, queria que ela estudasse. “Era primeiro os livros, depois a gente conversa. Podia faltar manteiga, mas livro não”.
Foi com essas influências que a artista tomou gosto pelas obras de José Lins do Rêgo, João Cabral de Melo Neto e Guimarães Rosa - que foram seu alicerce para as composições do 20 palavras ao Redor do Sol.
A soma de um 'bucado' de coisa
Cátia seguiu no piano clássico até 62, quando foi para um internato em Belém de Maria, no interior de Pernambuco. Adélia não queria ver a única filha sem música e transportar um piano por tantos quilômetros seria muito difícil. Então Cátia ganhou um violão, não dava para ir sem um instrumento. “Depois virei centauro, metade mulher metade violão”. Foi um seresteiro do bairro de Jaguaribe chamado Ronaldo que a ensinou a tocar antes da mudança. Assim, a música popular se instalou em sua vida.
“Enquanto mamãe mandou em mim era música clássica, mas eu não via pelo mundo tocando peças de grandes nomes. Eu sou uma soma de um 'bucado' de coisa. O que me seduzia mesmo era o popular”, explica Cátia para lembrar quando gravou sua primeira música. Foi em 1966, com uma parceria com o poeta de Diógenes Brayner. A música era "Mariana" e ganhou o Festival Expedito Gomes com muito barulho. Para a data, era inédito e escandaloso uma mulher tocando guitarra.
Cátia de França toca piano, violão, sanfona e percussão. Multifacetada, já fez de tudo um pouco. Foi professora, atriz, datilógrafa, parceira de palco e de turnê antes de lançar o 20 Palavras Ao Redor do Sol
Divulgação/José de Holanda
Professora formada, Cátia chegou a dar aulas, mas não se dava no magistério. “Minha história era a música, era o português, escrever, o oral, (...) uma simples coisa se transformava em uma história de vários livros. O lance era a literatura e ser engraçada. De divertir, de fazer a pessoa rir, fazer a pessoa dançar, pensar. Música faz isso, ela salva e cura”.
Na mesma época se aventurou em mais arte. Em Recife, foi diretora musical de um grupo de teatro e chegou a contracenar com Madame Satã. Encenando uma peça da campinense Elizabeth Marinheiro, fez uma turnê por Portugal e Espanha com um grupo folclórico a convite de Elba Ramalho.
Quando voltou ao Brasil, o Nordeste já estava pequeno para Cátia; a roupa começou a ficar apertada. Abdicou de João Pessoa para tentar coisas maiores no Rio de Janeiro, se estabelecendo em uma comunidade de paraibanos e pernambucanos em Santa Tereza. Foi com um trabalho já acertado como datilógrafa. Ficou três anos na firma, mas aos sábados e domingo era artista.
“Só que na minha cabeça, a máquina de datilografar era um instrumento de percussão. Eu trabalhava com tanta alegria, com tanto empenho e feliz da vida que chamei atenção do diretor da firma. Ele disse "o trabalho para ela é uma alegria, mas na verdade ela é uma artista, cantora, compositora. Então a partir de agora quando tiver festa na firma ela vai cantar', relembra.
Neste ponto, Cátia já era multi-instrumentista - o que gerou um convite de Zé Ramalho em 1978 para tocar percussão e sanfona no LP Avohai. O conterrâneo, que era um dos padrinhos do Selo Epic, da Sony Music, disse depois de sua turnê que estava no tempo de sua amiga ter uma carreira solo e, assim, o 20 Palavras ao Redor do Sol começou a nascer.
“Um paraibano produzindo uma conterrânea, ele quis fazer a maior honra possível. (...) Ali era tudo gente vestindo a camisa e querendo que o disco desse certo”.
Questão de tempo
“Era uma curtição com sotaque (...) o oxente, o visse, para conseguir um emprego tinha que segurar isso entendeu? E mulher, danou-se. E negra? De esquerda? (...) Então era muita minoria em cima de mim”, relembra Cátia de quando chegou ao Rio de Janeiro.
Mas ela se muniu de iguais. Zé Ramalho, Elba Ramalho, Sivuca e Dominguinhos são alguns nomes que compõem o 20 Palavras ao Redor do Sol, lançado em maio de 1979 pelo selo Epic, da gravadora CBS.
Um caleidoscópio de ritmos perpassados por uma linguagem popular e familiar, no disco Cátia de França tem uma voz cortante. Ela passa do Sertão ao Litoral da Paraíba, vai até em "Noviorque" para contar a sua história, profundamente nordestina e singular.
Encarte do 20 palavras ao Redor do Sol, lançado em 1979 pelo selo Epic, da gravadora CBS. Em 2021, ganhou um relançamento pela Três Selos
Divulgação/Cátia de França
A música "O Bonde" fala sobre um "amarelo" chamado Lambreta que passava na Rua das Trincheiras, em João Pessoa e que também esteve nas histórias de José Lins do Rego.
"Quem Vai Quem Vem" é de João Cabral de Melo Neto e pinta um sertão falido - bem masculino, como ela mesmo canta - a espera uma chuva feminina. "Porto de Cabedelo" é imagética ao nos fazer ir para o cais com personagens antes marginalizados, que na música dela são encantadores.
Já "Itabaiana" é sobre o ciclo da cana-de-açúcar na Paraíba. Passa por cidades como Itambé, Ingá, Pombal e Pilar com a sanfona de Dominguinhos embalando um baião que cria o ritmo da famosa Feira do Mangaio de Itabaiana. Só que ela errou o dia da feira e Sivuca, um itabaiano, cobrou. "Porque fica pra cantar melhor "hoje é dia de sábado", mas não era, era na terça-feira. Ele me consertou".
Cátia sustenta suas palavras, e as composições são férteis o suficiente para que o público plante seu próprio imaginário. O mundo da artista, de referências literárias, do riso e da música, também a imuniza para possíveis tropeços.
"Eu sou urbana né, para eu falar com tanta propriedade de um Nordeste lá pra dentro, é porque eu me acompanhei bem dos livros, eu abracei né. E a psicodélica fica por conta da minha idade né. (...) Em momento algum eu não posso mentir, não posso inventar. Você pode ter licenciosidade poética. O poeta voa fora da asa como dizia Manoel de Barros, mas você falar do Nordeste que querer carregar nas tintas você cai do cavalo. Vão dizer "isso é uma mentira"".
O tema de representatividade nordestina e paraibana está em evidência hoje, mas em 79 Cátia já tinha dois olhos arregalados, vigiando. Para ela, a visibilidade de seu povo era questão de tempo. "Nordestino é um contestador, ele pode dizer uma coisa avassaladora fazendo você dançar", diz.
“Porque era uma coisa amordaçada. Era uma coisa que ameaçava, mas você vê que Zé Ramalho, Elba, fizeram sucesso cantando coisas da gente e a coisa andou. O que ficou para trás foram os anos de chumbo. Entrou o regime democrático e renovou as coisas, foi uma transfusão de sangue. A gente tem valor o valor da gente e ninguém pode tirar isso da gente”.
Resistente, tem memórias de manifestações na escadaria do Palácio Tiradentes, no Rio de Janeiro, e também abasteceu suas composições da incongruência política da época. Suas músicas refletem a realidade do regime ditador de uma forma subjetiva. Foram todas carimbadas pelos órgãos de informação e repressão da ditadura. Os repressores eram burros e só entendiam se batessem de frente, conta a artista.
Ela fala que não virou de esquerda porque se mudou para o Rio, era desde pequena. Foi algo também da sua mãe, que tinha 'Geografia da Fome" de Josué de Castro na cabeceira da cama. Na sua vida de artista, não ficou preocupada em necessariamente abordar temas específicos ou escrever com uma demanda em mente, aconteceu de forma natural.
A autoconsciência da música de Cátia deixa sua voz atual e adaptável. "Ensacado" hoje pode ser muitas coisas, inclusive um grande chamado de coragem para enfrentar as mazelas políticas e sociais deixadas pandemia de Covid-19.
"Eu fui na alegria. Você pode contestar fazendo o povo dançar. Por isso que as pessoas estão comigo. 'Sustenta a Pisada' é para hoje! Para esse regime politicamente que estamos vivendo (...). Ela é guerreira. Não é para tocar com bateria, baixo. É para tocar com o berimbau, um instrumento de resistência”.
Com uma voz firme, Cátia de França canta um Nordeste inquietante, poético e atemporal
Divulgação/José de Holanda
Eterna
Ela não vai parar de criar e compor. Quer um projeto que coloque seu lado de atriz em evidência, publicar livros, inclusive um de partituras. Juntar seu arquivo e fazer uma exposição itinerante. Visitar mais a Paraíba. "E tudo que eu ganhei compartilhar", explica. Durante a pandemia, ficou isolada com seus cinco gatos, muitos instrumentos e curiosidade. Está lapidando algumas pedras preciosas que saíram deste período de introspecção.
Algo que levava tempo, hoje é na mão. Cátia de França pode estar até no Japão e ela mesma lembra de quando contaram que em algum país escandinavo estavam remixando suas canções para serem trilhas de raves. “Tive provas de que meu nome é nacional. Só falta botar isso na cabeça das pessoas que acham que tá faltando alguma coisa".
Ela conta que quando toca no Circo Voador e "nessas casas de show de São Paulo", a grande maioria do seu público é jovem, que a conheceu através da internet. "As criança diz assim pra mim "ah meu tio tinha uma fita cassete com uma música sua, 'Ensacado'. (...) E tem que ser um show dançando. Eles cantam junto. Pedem de voz alta, grita "eu quero isso" e no final chega junto. Conversa comigo, me para na rua".
20 Palavras ao Redor do Sol e o álbum Estilhaços (1980) só passaram a ter uma versão digital nas plataformas de streaming em 2019, mas foi partir disso que Cátia se consolidou ainda mais. Pode alcançar uma nova faixa etária, que hoje está bebendo músicas da sua geração.
“Eu abraço. Isso é um retorno. É um atestado que eles entenderam o que eu queria dizer. Um atestado de que minha música é eterna. Passou o tempo, vinte palavras é de 79, e um disco atual. É icônico".
“Nós somos os bisavós, e os netos e bisnetos são essa geração linda de resistência e coragem”, finaliza Cátia de França
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*Sob supervisão de Krys Carneiro
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Fonte: G1 - Paraíba