Neste domingo de eleição, em que os brasileiros definem a escolha do nome de quem deve governá-los pelos próximos quatro anos, o Estado de Minas percorre uma via de Belo Horizonte batizada com o nome do país e que pode ser vista, em certa medida, como um microcosmo de sua realidade. Em pouco mais de dois quilômetros, unindo duas praças emblemáticas da Região Centro-Sul, a Avenida Brasil, traçada no mapa como uma linha reta e na paisagem da cidade como um corredor arborizado, mostra, a exemplo de quem lhe inspirou o nome, desde o lado nobre às feridas das misérias sociais, mais visíveis nas barracas da população em situação de rua. E, mesmo com todo o sofrimento, chama a atenção perceber que alguns de seus moradores mais carentes até elegem esse pedacinho do Brasil como “o melhor da cidade para se viver”.
Elo entre as praças Floriano Peixoto e da Liberdade, cruzando a Região Hospitalar e os bairros Santa Efigênia e Funcionários, a Avenida Brasil abriga também um resumo de paixões políticas, opostas ou não, preocupações socioeconômicas e administrativas, além de um retrato de vários tempos e camadas de BH, que completará 125 anos em 12 de dezembro. Na planta original da capital, feita pela Comissão Construtora no final do século 19, o corredor com o nome inspirado no país já estava projetado e batizado. “Houve, depois da inauguração da capital (1897), uma mudança para 'Avenida Floriano Peixoto', mas, em 1901, quando o nome Belo Horizonte foi oficializado, o mesmo ocorreu com a Avenida Brasil”, explica o historiador e pesquisador Yuri Mello Mesquita.
Se muitos prédios tombados ajudam a contar a trajetória da avenida, são os brasileiros que moram lá, além de comerciantes e admiradores, que fazem a vida urbana ganhar forma, cor, identidade – assim como no país.
Nascido na casa de número 57, logo no início deste Brasil, o aposentado Marcos Santos, de 81 anos, lembra a infância e o clima de interior, com as peladas na rua e jogos como o de finca. No outro extremo, no Edifício Niemeyer, já na Praça da Liberdade, o administrador Eduardo Rondas ressalta a comodidade de ir a pé para o trabalho, “logo ali”, na Savassi. Entre essas duas pontas, em cada voz está a opinião sobre importantes questões do país e da cidade que está inserida nele: educação, saúde, habitação, segurança pública e economia, entre outros assuntos.
Em tempos de preferências políticas tão polarizadas entre os brasileiros, a avenida guarda mais uma curiosidade que, ao mesmo tempo, a une e separa. Bem no seu começo está o Bar Brasil 41. Pintado de vermelho, é lá que apoiadores do candidato petista Luiz Inácio Lula da Silva costumam se reunir. Já no fim da via fica a Praça da Liberdade, escolhida pelos eleitores de Jair Bolsonaro (PL) – e pelo próprio presidente, em atos de campanha – para manifestações.
Independentemente do resultado da eleição de hoje, a esperança é que a avenida, honrando seu nome, se torne um exemplo permanente de união – mas essa é outra história, que somente o futuro poderá contar.
Território de anseios, belezas e apreensões
São 9h de uma segunda-feira ensolarada, e o médico Sílvio Lisboa de Oliveira, de 81 anos, está firme na sua caminhada, que tem sempre a Avenida Brasil como parte do roteiro. Durante 30 anos, o cardiologista teve consultório no corredor, que considera um retrato da Região Centro-Sul da sua cidade natal, e a qual conhece bem: “Muitos bairros de Belo Horizonte receberam o nome dos templos religiosos católicos já existentes no local, como acontece aqui, com a Igreja Santa Efigênia dos Militares”, informa. No ano que vem, a paróquia, que fica nas proximidades do 1º Batalhão da Polícia Militar (1º BPM), antigo Quartel da Brigada Policial de Minas Gerais, na Praça Floriano Peixoto, vai completar 100 anos.
Na sua caminhada diária, Sílvio quase sempre se encontra com o amigo Marcos Santos, também de 81, nascido numa casa no início da avenida. E vai logo dizendo, com um sorriso que traz o sabor de histórias, a força do tempo e o valor da boa memória: “Nascemos no mesmo ano”, conta, em um sinal de “estamos em casa”.
Um segundo depois, Sílvio diz que a área teve muitos militares residentes, e, ao mesmo tempo, ressalta que o carnaval ganhou espaço por lá, e veio para ficar.
Da porta da casa onde Marcos vive com a família, é possível ver vários ícones do bairro: o prédio do 1º BPM, a praça, as ruas Domingos Vieira e Manaus, o monumento “Liberdade e Resistência”, de Jorge dos Anjos, em homenagem a Zumbi dos Palmares, e muitas árvores. “Na minha infância, este pedaço da avenida era de terra, a gente jogava pelada, finca... Você sabe o que é finca?”, pergunta Marcos ao repórter, referindo-se à brincadeira de crianças com um objeto de ferro pontiagudo, atirado ao chão na tentativa de que se fixasse para alcançar objetivos. Diante da resposta “sim”, e do comentário de que quase sempre alguém acabava com o pé furado, o morador dá uma risada e diz que, realmente, sempre havia um machucado.
Economista e administrador de hospitais, Marcos resume seu sentimento pelo bairro – “Adoro este lugar” –, sem reclamar de vizinhos, principalmente do bar bem ao lado da sua casa. “Não me incomoda em nada. Tenho um quarto no meio da casa, e durmo muito bem”, afirma, antes de revelar o voto em Simone Tebet (MDB) no primeiro turno, e lembrar que hoje, devido à idade, não é obrigado a comparecer às urnas.
Com a violência que avançou na cidade, no Brasil e no mundo, a maior preocupação de Marcos é com os cinco netos, na idade de 12 a 22 anos. “Temo por eles. Os valores mudaram muito. Eu, por exemplo, não tenho coragem de sair à noite, depois das 20h30. Acho perigoso.”
Ouvindo a conversa, Sílvio destaca outros ícones da Avenida Brasil, como o Colégio Arnaldo, onde estudou depois da passagem pelo Instituto de Educação e antes de ingressar na Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). “Fiz muitos amigos, frequentávamos o Clube Palmeiras (na Rua Grão Pará), jogávamos bocha no quintal de uma casa. Também gosto muito daqui, tanto que tive consultório na Brasil durante 30 anos”, relembra.
A resposta é a senha para uma pergunta sobre saúde. Como ela anda no Brasil? “Não lido nem sou expert em saúde pública, mas é claro que não está bem. Todos os governantes se preocupam com outros setores; obviamente, se não é prioridade, assim como ocorre com educação, não funciona. O SUS, por sua vez, é reconhecido internacionalmente, tem um sistema de vacinação que é modelo, mas, para as doenças, a assistência é precária”, diz o médico. Ao lado, Marcos acrescenta que, tecnicamente, não se resolve a situação da saúde pública num país por decreto, sendo necessárias ações efetivas.
Uma conversa puxa a outra, mas o médico prefere não revelar o voto. Só sabe mesmo que não votará no petista.
DE CORPO INTEIRO
- Extensão da Avenida Brasil: 2.094 metros
- Imóveis: 2.104 não residenciais e 215 residenciais
- Patrimônio: abriga construções importantes, como o 1º Batalhão da Polícia Militar de Minas Gerais, antigo quartel, a Igreja Santa Efigênia dos Militares, a Santa Casa BH, e termina no conjunto da Praça da Liberdade, tombada pelo Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais. Apenas ao longo da Avenida Brasil, há 24 imóveis com proteção municipal. Lá estão ainda a sede da Cúria Metropolitana e uma unidade da PUC Minas. Um monumento de destaque é a estátua de Tiradentes, no cruzamento com a Avenida Afonso Pena.
Um lugar que se modernizou, as tem muito a melhorar
A avenida que leva o nome do Brasil no coração de Belo Horizonte tem exatamente 2.094 metros de extensão, segundo a prefeitura, com 2.104 imóveis não residenciais e 215 residenciais. Dá para ver que muitos deles, que antes eram moradias, foram ocupados por estabelecimentos comerciais: viraram lojas, bares, lanchonetes e restaurantes, clínicas, escritórios... No zigue-zague pelas pistas, predominam na cena homens e mulheres elegantemente vestidos e apressados, jovens e idosos com roupas de academia, mamães com carrinho de bebê e muita gente a caminho da Santa Casa BH, na esquina com a Avenida Francisco Sales.
Protegida do sol, à sombra e com chapeuzinho charmoso, Silma Vieira, viúva, de 73 anos, explica o motivo de estar ali, em plena manhã. “Vai a uma consulta médica?”, pergunta o repórter. “Não. Venho para trazer uma palavra de esperança a quem precisa. Sou evangélica, testemunha de Jeová”, diz a mulher, nascida em Almenara, no Vale do Jequitinhonha, e residente há 65 anos em BH, no Bairro Santa Efigênia.
Ao falar da palavra esperança, Silma cita outra, para ela tão importante no mundo atual: oportunidade. “Se tivesse estudado, teria mais opções. Fui até o primeiro ano (ensino fundamental), por isso acho a educação essencial. Esse é o caminho. Se você estuda, pode ter mais chances na vida”, acredita.
Os sons das ambulâncias se misturam ao silêncio que a reflexão traz, quebrada pela resposta que se segue à pergunta sobre o voto de hoje. “O voto é secreto, não é?” Só resta concordar. Agradecemos pela entrevista e seguimos Brasil afora.
PONTOS-CHAVE
Mais adiante, do mesmo lado da avenida, está o chaveiro Paulo Roberto de Paiva Moraes, de 53, carioca residente há 35 em BH, muitos deles no célebre Edifício Maletta, na Avenida Augusto de Lima com Rua da Bahia, no Centro. Vestido com a camisa amarela da Seleção Brasileira, Paulo Roberto declara seu voto em Jair Bolsonaro e diz estar confiante na força do comércio para vencer as crises. “Passou a pandemia, agora a economia está melhorando bem. O Brasil precisa de mais investimentos, e de redução de impostos.”
Entre uma chave e outra, o carioca Paulo Roberto, pai de cinco meninas e com seis netos, olha para a avenida e diz do que mais gosta neste pedaço do Brasil: “O movimento é a melhor coisa daqui. Tem sempre um serviço”.
De frente para o Colégio Arnaldo, na confluência das avenidas Brasil, Carandaí e Pasteur, Reginaldo dos Santos Amorim, de 45, diz que está vivendo no gramado de um dos canteiros há sete meses. “Estou há um ano na rua, e acho este o melhor lugar para viver”, afirma o desempregado, que vive de recolher materiais recicláveis, diante da sua barraca de plástico, que tem como “chave da porta” duas pedras que impedem o plástico preto de voar.
Ao lado do cachorrinho Basé, Reginaldo conta que tem 10 filhos e nove netos. Devido aos caminhos tortos e “paradas erradas”, está hoje sem teto, mas se sente acolhido. “O lugar é a gente quem faz. Sou muito respeitado, as pessoas me acolheram, sempre recebo doação.”
Sobre a situação de moradia no país, ele acredita ter a explicação: “Falta vergonha aos governantes. Sou pedreiro, e, se tivesse condição de trabalho, não estaria aqui. As pessoas precisam de uma casa”, diz Reginaldo, detalhando a dificuldade de morar na rua. “Dormir, à noite, é quase impossível, fico sempre com medo. De dia, mal dá para cochilar.” Sobre as eleições, Reginaldo decidiu que vai votar em Lula.
DOIS LADOS
Um dos trechos mais bonitos da avenida começa na esquina da Rua Pernambuco e prossegue no cruzamento com a Gonçalves Dias, Alagoas, Cláudio Manoel e Sergipe, até chegar à Praça da Liberdade, tombada pelo Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais (Iepha). Nesse pedaço do Brasil, como em muitos outros, cores dão o tom da preferência política de eleitores.
Nas janelas de apartamentos, tremulam tanto bandeiras vermelhas quanto verde-amarelas.
A beleza na pista elevada em direção ao Palácio da Liberdade, ex-sede do governo de Minas e atual equipamento cultural vinculado à Secretaria de Estado de Cultura e Turismo, se dá, especialmente, pelas palmeiras-imperiais plantadas no início do século passado.
No Circuito Cultural, com prédios da época da construção de BH, museus, construções em estilos moderno e pós-moderno, como o Rainha da Sucata, a Avenida Brasil termina em grande estilo, bem ao lado do Edifício Niemeyer, com suas curvas sinuosas. Projetado em 1954 pelo arquiteto Oscar Niemeyer (1907-2012) e concluído em 1960, uma herança do gênio que deixaria sua marca inconfundível em muitos outros locais de BH e também na história do Brasil, com os traços que deram origem à capital da República, Brasília.
No endereço icônico, a tarde chega. Moradora do edifício, Célia da Costa, psicóloga, conduz a equipe do EM ao terraço para oferecer uma visão privilegiada deste Brasil. Do alto, numa vista de 360 graus, vê-se a avenida “quase” em direção ao infinito, pois, ao longe, no fim do quadro, está a Serra da Piedade – com a luz solar, distingue-se a silhueta da ermida do século 18.
Casada, com dois filhos e natural de São Bernardo do Campo (SP), Célia elogia a paisagem “maravilhosa” e destaca a diversidade do patrimônio, com as edificações antigas e modernas, muitas delas tombadas pelo Iepha ou pelo município.
“O bom de morar aqui é poder fazer tudo a pé. A Avenida Brasil se encontra com várias ruas e avenidas, está bem localizada; você chega ao Centro da cidade com rapidez. Além disso, temos a Praça da Liberdade, que é bonita de se admirar, ainda mais aqui do alto, e é ótima para caminhadas”, avalia a psicóloga, no alto do prédio. Neste domingo, ela diz que votará em Lula. E diz não conceber a ideia de que um dos lados da disputa se aproprie da Bandeira Nacional, “que é dos brasileiros”.
Também morador do Niemeyer, o administrador Eduardo Rondas se mudou com a esposa e a filha para um apartamento no edifício há três anos, e revela que, desde adolescente, quando namorava nos bancos da Praça da Liberdade, gostava de ficar olhando para o prédio. “É um patrimônio importante”, ressalta.
O tempo passou, a oportunidade chegou e o serviço ficou completo: “O melhor é poder ir trabalhar a pé, sem precisar pegar carro. A localização é excelente”. Como se trata de um imóvel tombado pelo município, acrescenta Eduardo, o proprietário está isento do IPTU, o que une, assim, o útil ao agradável. Já na hora de votar, Eduardo vai de Bolsonaro.