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Arquitetura: o que aconteceu com os monumentos fascistas após o fascismo


Em toda a Europa, muitas construções controversas ainda permanecem de pé, mas uma pequena cidade italiana encontrou uma maneira de contextualizar e neutralizar o legado do fascismo. A escultura nazista de Karl Albiker no Estádio Olímpico de Berlim permanece de pé

ALAMY via BBC

À primeira vista, Bolzano, no extremo norte da Itália, é como qualquer outra cidade alpina.

Aninhada em um vale margeado por colinas verdes íngremes repletas de castelos, celeiros, igrejas e vinhedos, a cidade tem ruas sinuosas, casas em tons pastel e tavernas barrocas.

Mas basta atravessar o rio Talfer no extremo oeste da cidade e, de repente, a história é outra.

As ruas aconchegantes são substituídas por avenidas largas e praças solenes enormes com vista para prédios austeros e cinzentos.

A arquitetura é linear, monótona e dominante, com pórticos de colunas altas e retangulares e arcos estranhos que se repetem pelas avenidas como viadutos para lugar nenhum.

Em meio a este conjunto sombrio, duas estruturas se destacam.

A primeira é o prédio do Departamento Fiscal da cidade, um enorme bloco cinza adornado com um baixo-relevo gigantesco que representa - por meio de 57 painéis esculpidos - a ascensão do fascismo italiano, desde a Marcha sobre Roma até as conquistas coloniais na África.

No centro, há uma representação de Mussolini a cavalo, com o braço direito estendido em uma saudação romana.

O Monumento da Vitória, em Bolzano, foi descrito como 'o primeiro monumento verdadeiramente fascista'

ALAMY via BBC

É uma peça notável da arquitetura fascista - imponente, odiosa e desconcertante ao mesmo tempo.

A segunda é o Monumento da Vitória, um impressionante arco feito de mármore branco, com colunas esculpidas para lembrar fasces, o feixe de bastões que simbolizava o movimento fascista.

Tem uma presença etérea, quase fantasmagórica, se erguendo como uma miragem próximo aos prédios de apartamentos cinzentos e às árvores verdes que o cercam.

Ao longo de seu friso, uma inscrição em latim diz: "Aqui, na fronteira da pátria, estabelecemos a bandeira. A partir deste ponto, educamos os outros com a língua, a lei e a cultura".

Erguido em 1928, atualmente é envolto por uma cerca alta de metal. Foi ponto de encontro para passeatas de extrema-direita e objeto de várias tentativas de explosão.

O historiador Jeffrey Schnapp o descreveu como "o primeiro monumento verdadeiramente fascista".

Hoje, no entanto, estas duas peças arquitetônicas de propaganda fascista são o elemento central de um experimento ousado que aborda o debate em torno de monumentos contestados - e que oferece um modelo de solução para outras comunidades divididas entre derrubar ou manter monumentos com conotações racistas, imperialistas ou fascistas.

Antes da Primeira Guerra Mundial, Bolzano (ou Bozen como é conhecida em alemão - ambos os nomes são oficiais) era a maior cidade do Tirol do Sul, uma província montanhosa dentro do Império Austro-Húngaro.

Tanto a cidade quanto a Província eram predominantemente de língua alemã, mas na Conferência de Paz, em 1919, foram concedidas à Itália por motivos de segurança.

O Tirol do Sul proporcionaria à Itália uma fronteira natural ao norte ao longo dos Alpes e o controle da estratégica Passagem de Brennero.

Como uma cidade de fronteira com população majoritariamente não italiana, foi submetida a uma política de intensa italianização sob o regime de Mussolini.

Os nomes dos lugares foram alterados, as instituições culturais tirolesas foram fechadas, e o alemão - a língua nativa de 90% da Província - foi efetivamente banido.

Um novo bairro enorme e uma zona industrial foram construídos do outro lado do rio de Bolzano, e milhares de italianos foram incentivados a se instalar.

A nova cidade foi adornada com inúmeros monumentos e edifícios dedicados à "glória" do fascismo.

Após a guerra, o governo italiano tentou se redimir das políticas fascistas, concedendo aos habitantes do Tirol do Sul um alto nível de autonomia.

Os direitos culturais e linguísticos seriam respeitados, os empregos públicos seriam alocados proporcionalmente com base no idioma e 90% da receita tributária permaneceriam dentro da região.

No entanto, a paisagem dos monumentos fascistas permaneceu uma fonte de atrito.

"Para os falantes de alemão, eram um símbolo do processo de italianização fascista que tentou aniquilar sua cultura e língua. Eles queriam que os monumentos fossem derrubados", diz Andrea Di Michele, professor de História Contemporânea da Universidade de Bolzano.

O Vale dos Caídos, na Espanha, é o legado arquitetônico mais notório de Franco

GETTY IMAGES via BBC

"Enquanto os italianos, agora maioria em Bolzano, mas cercados por uma Província predominantemente de língua alemã, se apegaram ao Monumento da Vitória em particular como um símbolo não do fascismo, mas de sua identidade italiana na região".

O vandalismo persistente e as tentativas de bombardeio resultaram em um grande portão de metal erguido ao redor do Monumento da Vitória, enquanto o Departamento Fiscal teve que ser vigiado 24 horas por dia por policiais militares.

As duas construções foram usadas ??como ponto de encontro para marchas rivais entre grupos de extrema-direita de língua italiana e alemã.

Tentativas frequentes de resolver o conflito acabaram fracassando, resultando em incompreensão mútua.

A Itália não é o único país que luta com o legado arquitetônico de sua era fascista.

Na Espanha, um "pacto de esquecimento" fez com que os monumentos fascistas da era franquista permanecessem praticamente intocados até 2007, quando a Lei da Memória Histórica forneceu um marco legal para sua remoção.

Em 2010, uma inscrição glorificando Franco foi retirada do friso do Conselho Nacional de Pesquisa da Espanha, deixando em grande parte uma tela em branco.

E a última estátua pública de Franco foi removida em fevereiro de 2021, uma iniciativa contestada pelo Vox, o terceiro maior partido político da Espanha.

Edifícios grandes demais para serem removidos continuam a representar um desafio.

A Universidade de Gijon é o maior edifício da Espanha, construído durante os primeiros anos do regime de Franco em estilo neoherreriano, e descrito como tendo "valor arquitetônico excepcional".

Mesmo assim, o conselho de esquerda da região vetou repetidamente as tentativas de indicá-lo para ser reconhecido pela Unesco, argumentando que "um edifício ligado ao franquismo não pode ser um Patrimônio da Humanidade".

O patrimônio arquitetônico mais notório de Franco é o Vale dos Caídos - um complexo gigantesco que contém uma basílica, uma hospedaria, vários monumentos, uma enorme cruz e um mausoléu contendo os restos mortais de mais de 30 mil pessoas.

Franco pretendia que fosse um monumento de reconciliação nacional, e sua cripta foi consagrada pelo Papa João 23 em 1960.

Mas outros o consideram uma exaltação do franquismo e o compararam a um campo de concentração nazista.

Em 2019, os restos mortais de Franco foram exumados e removidos e, em 2020, o governo propôs transformar o local em cemitério civil.

Mas o debate permaneceu em grande parte binário - remoção ou preservação, com pouco meio termo.

O legado contestado da Guerra Civil Espanhola e do regime franquista é o que torna o debate tão polarizado e complexo.

Na Alemanha, enquanto isso, você teria dificuldade para encontrar qualquer arquitetura nazista.

A maior parte foi destruída durante a guerra, ou pouco depois, como parte do processo de desnazificação do país.

Edifícios fascistas sobreviventes foram simplesmente redefinidos, removendo suásticas e outros símbolos fascistas -sobretudo no Estádio Olímpico de Berlim.

Outras construções, como a sede dos congressos de 1935 em Nuremberg, foram escolhidas para abrigar centros de documentação nazistas, seu monumentalismo visto como símbolo da arrogância e megalomania das ambições arquitetônicas de Hitler.

Na Itália, o bairro EUR de Roma foi concebido por Mussolini como uma celebração arquitetônica do fascismo.

Ao vagar por sua paisagem misteriosa, você se depara com o Palazzo della Civiltà Italiana (também conhecido como Coliseu Quadrado), cuja fachada é estampada com uma citação retirada do discurso de Mussolini anunciando a invasão da Etiópia.

Ao norte do centro da cidade de Roma fica o complexo esportivo Foro Italico, cuja entrada apresenta um obelisco de 17,5 m de altura com as palavras Mussolini Dux gravadas.

Dentro do Foro Italico, está A Apoteose do Fascismo, uma pintura que retrata Mussolini como uma espécie de Deus-Imperador.

Todos os símbolos fascistas foram apagados do Estádio Olímpico de Berlim

ALAMY via BBC

Foi coberto pelos Aliados em 1944 por ser muito grotesco e, depois, descoberto pelo governo italiano em 1996.

"Na Itália, que permitiu que seus monumentos fascistas sobrevivessem inquestionáveis, o risco é outro", escreve a historiadora Ruth Ben-Ghiat.

"Se os monumentos são tratados meramente como objetos estéticos despolitizados, então, a extrema direita pode se aproveitar da ideologia cruel enquanto todo mundo se habitua."

Espaços contestados

Em 2014, um grupo intercomunitário de historiadores e artistas de Bolzano se reuniu para discutir como resolver o que estava se tornando uma disputa cada vez mais fragmentada e emocionalmente desgastante.

A dinâmica social da cidade transformou os edifícios em espaços contestados, criando uma necessidade e um senso de urgência para que uma solução fosse encontrada.

"A escolha binária era destruir os monumentos ou deixá-los de pé", diz Hannes Obermair, professor de História Contemporânea da Universidade de Innsbruck e um dos especialistas encarregados de encontrar uma solução para a questão de Bolzano.

"Mas, se você remover os monumentos, você remove as evidências e evita lidar com as camadas complexas de história e identidade que impulsionam essa disputa. Alternativamente, manter os monumentos sem desafiá-los simplesmente normaliza sua retórica fascista."

No final, foi encontrada uma solução criativa, que conseguiu unir a cidade e aliviar a tensão entre as duas comunidades.

A solução foi "recontextualizar" os monumentos, mantendo a sua integridade artística e importância histórica, ao mesmo tempo que neutralizam e subvertem a sua retórica fascista.

O 'Coliseu Quadrado', em Roma, foi concebido por Mussolini como celebração do fascismo

GETTY IMAGES via BBC

"Foi uma oportunidade para a cidade ter uma conversa honesta sobre sua história", avalia Obermair.

"As disputas são menos sobre o passado do que sobre o presente. Então, que tipo de sociedade somos agora? Somos uma sociedade dividida por ideologias do passado ou somos uma sociedade democrática e pluralista que acredita nos valores de participação, tolerância e respeito pela humanidade?"

Vamos começar pelo Monumento da Vitória, que despertou fortes emoções em ambos os lados. É explicitamente fascista, exaltando a conquista e colonização do Tirol do Sul e a suposta superioridade da civilização latina.

Mas também é visto como uma celebração da vitória italiana na Primeira Guerra Mundial e um memorial aos soldados italianos mortos em combate.

O monumento também tem um valor histórico significativo - como o primeiro monumento fascista em qualquer lugar do mundo - e mérito artístico, sendo um exemplo eminente do Racionalismo Italiano, movimento agora visto como importante para o desenvolvimento da arquitetura moderna, assim como a Art Déco francesa e a Escola de Bauhaus alemã.

Alguns dos mais importantes arquitetos e artistas italianos da época trabalharam no monumento, incluindo Marcello Piacentini e Adolfo Wildt.

A primeira intervenção foi colocar um anel de LED em torno de uma das colunas, sufocando simbolicamente a retórica fascista sem prejudicar a integridade artística do monumento.

Em seguida, um museu foi construído em uma cripta embaixo do prédio, detalhando a turbulenta história moderna de Bolzano, contextualizando a criação do monumento e explorando o debate em torno dele.

Depois, veio o baixo-relevo. A tarefa coube a dois artistas locais, Arnold Holzknecht e Michele Bernardi.

A ideia deles era simples: pegar um prédio com retórica explicitamente fascista e recontextualizá-lo como um monumento antifascista.

Os artistas decidiram estampar a frase de Hannah Arendt "Ninguém tem o direito de obedecer" em todo o friso em alemão, italiano e ladino — as três línguas oficiais da região.

A citação é ainda mais subversiva quando você lembra que o prédio abriga atualmente a Receita Federal da cidade.

A sede do departamento fiscal de Bolzano foi recentemente recontextualizada

CITTÀ DI BOLZANO via BBC

"Deixar os monumentos in situ permite contemplar o contexto em que foram criados", explica Di Michele, que também foi membro da força-tarefa intercomunitária.

"Cria um diálogo sobre eles e sobre o fascismo em geral, e nos permite entender melhor o forte impacto urbano da arquitetura fascista e as dimensões de longo alcance das intervenções artísticas. Se você os transfere para uma sala de museu, não consegue entender o impacto que pretendiam ter e tiveram na cidade, no traçado urbano e simbólico."

As intervenções artísticas foram um enorme sucesso, elogiadas por políticos e membros da sociedade civil de ambas as comunidades.

Ainda há tensões ocasionais, mas não sobre as construções. Este capítulo foi encerrado. Eles conseguiram até neutralizar os comícios extremistas que estavam contaminando a cidade.

"A extrema-direita italiana costumava se reunir todos os anos em frente ao baixo-relevo e fazer a saudação fascista", diz Obermair.

"Mas com a citação de Arendt lá, eles se sentem humilhados. Então, pararam de vir. Da mesma forma, os grupos de extrema direita da comunidade de língua alemã costumavam se reunir em frente ao Monumento da Vitória para dizer: 'Veja como a Itália está nos oprimindo ', mas agora eles não podem mais dizer isso. Nós destruímos seus brinquedos, por assim dizer."

Obermair está entusiasmado com o fato de o modelo de Bolzano poder ser replicado com sucesso em outras partes da Itália, assim como em outros países que lutam com legados fascistas divisivos e complexos, como a Espanha.

O modelo deles também oferece uma solução para o debate sobre estátuas no Reino Unido e nos EUA.

"Claro que o contexto social de Bolzano é importante, e cada comunidade precisa imaginar sua própria intervenção artística", explica Obermair.

"Mas a ideia básica, de que não devemos destruir monumentos, mas transformá-los radicalmente, é poderosa. Isso fornece à população ferramentas para refletir sobre a história, questionar ideologias e analisar criticamente o ambiente construído ao seu redor. Nenhuma arquitetura é neutra. Em última análise, somos nós, não os monumentos, que devemos ter a palavra final."

Leia a versão original desta reportagem (em inglês) no site BBC Culture.

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