Epidemiologista César Gomes Victora rejeitou, nesta sexta (5), a distinção de Grã-Cruz da Ordem Nacional do Mérito Científico. Honraria foi publicada no Diário Oficial da União de quarta (3). Cesar Victora, da Universidade Federal de Pelotas, é um dos epidemiologistas mais influentes do mundo
Daniela Xu
Professor emérito da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), o epidemiologista César Gomes Victora recusou, nesta sexta-feira (5), a distinção de Grã-Cruz da Ordem Nacional do Mérito Científico concedida pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido).
"É uma homenagem importante, uma das coisas mais altas que um cientista pode almejar em termos de distinção. Mas, do meu ponto de vista, aceitar esta homenagem deste governo seria compactuar com o negacionismo, com a maneira como a pandemia tem sido enfrentada e com os cortes no orçamento científico do Brasil", afirmou ao g1.
O epidemiologista foi promovido de comendador, grau conferido em 2008, a Grã-Cruz na área das Ciências Biológicas na quarta-feira (3), em decreto publicado no Diário Oficial da União pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações. Porém, dois dias depois, enviou ao ministro Marcos Pontes a correspondência na qual não aceita a distinção. Leia a carta abaixo.
"Enquanto cientista, não consigo compactuar com a forma pela qual o negacionismo em geral, as perseguições a colegas cientistas e em especial os recentes cortes nos orçamentos federais para a ciência têm sido utilizados como ferramentas para retroceder os importantes progressos alcançados pela comunidade científica brasileira nas últimas décadas", acrescentou.
Na missiva, Victora destaca que procura, em palestras e artigos científicos, se opor às manifestações do presidente a favor de medidas como o uso de máscaras, distanciamento social e o tratamento com remédios já comprovadamente ineficazes contra o coronavírus.
"A homenagem oferecida por um governo federal que não apenas ignora, mas ativamente boicota as recomendações da epidemiologia e da saúde coletiva, não me parece pertinente", escreveu.
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Carta de César Victora, da UFPel, recusando distinção do governo
Reprodução
Solidariedade a colegas cientistas
O professor conta que escreveu a carta na quinta, quando soube da homenagem. Porém, a decisão de enviá-la ao ministro foi tomada nesta sexta, após saber que outros dois cientistas tiveram a homenagem retirada pelo presidente nesta sexta: Marcus Vinícius Guimarães de Lacerda e Adele Schwartz Benkazen.
Pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Marcus Vinícius Guimarães de Lacerda coordenou o estudo no Amazonas que desaprovou o uso da cloroquina para a Covid-19. Lacerda também se manifestou abertamente contra o uso do medicamento e foi vítima de ameaças.
Já Adele Benzaken é atual diretora da Fiocruz Amazônia. Ela chefiou a área de enfrentamento ao HIV/Aids no Ministério da Saúde durante os governos Dilma Rousseff e Michel Temer, mas foi demitida do cargo no início da gestão Jair Bolsonaro.
"Eu teria muito prazer de receber isto, desde que fosse de um governo que está seriamente dedicado à ciência e que respeita a comunidade científica. Eu até espero que receba de novo sem precisar renunciar", destaca Victora.
Cesar Victora é diretor do Centro Internacional para a Equidade em Saúde e venceu, este ano, o Prêmio Richard Doll em Epidemiologia, a principal premiação científica na área, concedida a cada três anos pela Associação Internacional de Epidemiologia (IEA, na sigla em inglês). Ele é reconhecido especialmente pela contribuição nas políticas globais sobre amamentação, nutrição infantil e desigualdades na saúde e no desenvolvimento de métodos epidemiológicos à saúde materno-infantil, inicialmente no Brasil e, depois, em dezenas de países pobres.
Também receberam a honraria os professores da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Luigi Carro, na área das Ciências da Terra, e José Vicente Tavares dos Santos, na área de Ciências Humanas.
Segundo Victora, outros cientistas já se articulam para, também, assinar uma carta conjunta e comunicar a renúncia à distinção.
"Não quis comprometer minha integridade científica recebendo uma homenagem de um governo que tem sistematicamente boicotado tudo que a gente representa", diz.
Entidades como a Academia Brasileira de Ciências (ABC) e a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) divulgaram notas repudiando a decisão de Bolsonaro em retirar a homenagem aos dois pesquisadores. (Leia abaixo)
Nota da ABC
A Diretoria da Academia Brasileira de Ciências manifesta sua indignação e seu protesto pelo expurgo de Adele Schwartz Benzaken e Marcus Vinícius Guimarães de Lacerda, notáveis cientistas, da lista de agraciados com a Ordem Nacional do Mérito Científico, publicada em 3 de novembro de 2021 no Decreto assinado pelo Presidente da República, que na data de hoje resolve retificar o decreto que assinou.
Esse ato, inédito no país e típico de regimes autoritários, é mais um ataque à ciência, à inovação e à inteligência do país. Ciência e inovação estão sendo debilitadas por uma política econômica equivocada, que mira o horizonte imediato, com medidas que prejudicam o futuro do Brasil. Atitudes negacionistas, com ataques irresponsáveis à evidência científica, prejudicam o desenvolvimento nacional e afetam diretamente a saúde da população.
A Ordem Nacional do Mérito Científico, fundada em 1993, é um instrumento de Estado para reconhecer contribuições científicas e técnicas de personalidades brasileiras e estrangeiras. Está regulamentada por diversos decretos, o último dos quais sendo o Decreto 10.039 de 3 de outubro de 2019, que altera o Decreto 4.115 de 6 de fevereiro de 2002. Este já definia um Conselho da Ordem, constituído pelos Ministros de Ciência e Tecnologia, Relações Exteriores, Indústria e Comércio e Educação. Estabelecia também que o Presidente da República é o Grão-Mestre da Ordem e o Ministro de Estado da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações é o Chanceler, e que “o Grão-Mestre, o Chanceler, os Membros do Conselho da Ordem e o Secretário-Executivo da Ordem são agraciados na classe de Grã-Cruz, que conservarão”. Além disso, instituía uma Comissão Técnica, formada por três membros indicados pelo Ministro de Ciência e Tecnologia, três pela Academia Brasileira de Ciências e três pela SBPC, incumbida de apreciar o mérito das propostas. O Decreto de 2019 manteve essa estrutura, substituindo o Ministério de Indústria e Comércio pelo Ministério da Economia.
A última reunião da Comissão Técnica foi realizada em 2019. Os nomes de cientistas que constam da lista de agraciados, recentemente anunciada, teve sua origem naquela reunião, onde o mérito científico foi o único balizador para a inclusão de um nome na lista. O presidente da República, como Grão-Mestre da Ordem, deveria preservar a história e o prestígio que a Ordem traz para a ciência no Brasil. Mas não é isso que a recente atitude do Presidente demonstra.
É inaceitável que se pratique o expurgo de cientistas que têm contribuído, com integridade e competência, para o desenvolvimento nacional e a saúde da população. Protestamos, como cientistas e cidadãos, contra essa escalada autoritária, que representa um ataque frontal ao espírito da Ordem Nacional do Mérito Científico. E reivindicamos o retorno à lista dos nomes arbitrariamente retirados.
Nota da SBPC
A SBPC manifesta seu repúdio ante a cassação, nesta sexta-feira, dia 05/11/2021, da outorga do título de Comendador da Ordem Nacional do Mérito Científico aos profs. Adele Schwartz Benzaken e Marcus Vinícius Guimarães de Lacerda. Seus nomes foram propostos, seguindo as normas do decreto que regula a condecoração, por uma comissão técnica na qual a SBPC e a ABC eram majoritárias. Fica evidente que o governo federal fez a cassação depois de saber que os dois cientistas renomados conduziam pesquisas cujos resultados contrariavam interesses de políticas governamentais, agindo como censor da pesquisa, sem o devido respeito à verdade científica e à diversidade.
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