Aos 101 anos, ela só se afastou das atividades aos 94, quando sofreu um AVC. Filhas, netas e historiadora comentam trajetória dedicada à família e à saúde da população, principalmente de mulheres. Aos 101 anos, Scylla Prata é uma das fundadoras do Hospital de Amor em Barretos
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Arquivo pessoal Dra. Scylla Duarte Prata
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A história de Scylla Prata, uma das fundadoras do Hospital de Amor em Barretos (SP), é marcada pela coragem e pelo pioneirismo, em especial em levar a prevenção do câncer ginecológico ao interior de São Paulo.
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Hoje, aos 101 anos, Scylla foi uma das nove mulheres na turma de medicina da Universidade de São Paulo (USP) que se formaram em 1949. A médica enfrentou o preconceito durante a graduação e foi responsável por materializar o sonho do marido, o médico Paulo Prata, já falecido, na construção de um hospital aberto ao público em 1962.
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Conhecido como Hospital de Amor atualmente, o centro de saúde é referência no tratamento de câncer no Brasil e um dos maiores de tratamento oncológico da América Latina. No entanto, não é apenas o êxito profissional que chama a atenção na trajetória de Scylla, como lembra uma de suas cinco filhas, Beatriz Prata.
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"Acho que o maior legado é a coragem. Coragem de ir atrás dos sonhos profissionais, sem deixar de lado os sonhos como mulher, como mãe. Ela não se conformou em escolher entre os sonhos profissionais e os de mãe e mulher, ela carregou todos."
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Scylla Duarte Prata com Paulo Prata no casamento, em 1949 e na sua formatura em medicina pela Universidade de São Paulo
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Arquivo pessoal Dra. Scylla Duarte Prata
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Atualmente, Scylla está afastada das atividades como médica e gestora do hospital. Um problema de visão que começou aos 85 anos se agravou ao longo do tempo, e um acidente vascular cerebral (AVC) aos 94 anos, quando ainda estava em atividade, fez com que ela precisasse deixar o trabalho de vez.
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No entanto, o legado da centenária é carregado pelas gerações mais novas e todos que passaram pela vida de Scylla. É o que faz questão de ressaltar a neta, Cristina Prata, médica intensivista e atualmente diretora médica do hospital.
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"O hospital fazia parte da vida de todos nós. Eles [Scylla e Paulo] sempre estavam trabalhando, sempre o meu avô estava contando alguma coisa, sempre minha avó estava contando alguma coisa. Era uma vida profissional muito intensa, ela permeava a nossa própria história de família."
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Scylla e Henrique Prata, fundadores do Hospital de Amor em Barretos
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Arquivo pessoal Dra. Scylla Duarte Prata
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Da infância no campo à graduação
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Nascida em Sacramento (MG), Scylla é filha de Antenor Duarte Vilela e Ruth Vieira Duarte, que tiveram mais seis filhos. A família rica e ligada, em um primeiro momento, ao cultivo de café e cereais e, depois, à criação de gado permitiu uma educação de elite e religiosa, o que influenciaria Scylla por toda a vida.
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Desde nova, ela se mostrou muito estudiosa e, de acordo com relatos obtidos pela historiadora Karla Armani Medeiros, ainda criança, Scylla decidiu que seria médica. Os pais, principalmente Antenor, apoiou a filha nos estudos, mesmo com o preconceito da época, como lembra Beatriz Prata.
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"Ela foi uma pioneira da época dela. O pai era pecuarista, família ligada ao mundo rural que ainda tinha um pouco de preconceito, de mulher médica examinando os pacientes. Ela furou essa barreira e continuou sendo pioneira, equilibrando o consultório, o hospital e a família."
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Em 1940, Scylla se mudou para São Paulo (SP), onde fez um cursinho preparatório. Quatro anos depois, ingressou na USP, onde conheceu Paulo, que também cursava medicina e com quem se casaria em dezembro de 1949.
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Família da Dra. Scylla na década de 1920. Scylla é a última à direita e os demais são Antenor Duarte Vilela, pai, Ruth Vieira Vilela, mãe, irmãos Dinah, Urisbela, Elber, Bene e Olga
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Arquivo pessoal Dra. Scylla Duarte Prata
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A fé no sonho de Paulo
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Dez anos após o casamento, o casal se mudou de São Paulo para Catanduva (SP), onde tinha terras e permaneceu até 1959, quando voltou para Barretos. Para ajudar, o pai de Scylla comprou um consultório para a filha, que trabalhava com a ginecologia, e para Paulo, com a oncologia.
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Esse pequeno consultório foi transformado em um hospital geral no ano de 1962, chamado 'Hospital São Judas Tadeus', comandado por mais dois médicos, Miguel Gonçalves e Domingos Boldrini.
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Foi o início do Hospital de Amor de Barretos e do sonho de Paulo em receber pacientes que não tinham condições de pagar pelo serviço, como conta a filha, Clarice Duarte Prata, que trabalha com a prevenção do câncer em zonas rurais.
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"Ela sempre foi uma mulher muito dedicada ao hospital. Na verdade, meu pai sonhou com esse hospital, toda a parte filosófica, de humanização do hospital, e minha mãe foi quem fez o sonho virar realidade. Ela ajudou meu pai, abraçou o sonho dele e transformou em realidade, porque toda a parte financeira do hospital, na época, foi ela que bancou."
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Scylla e o filho Henrique Prata com João Paulo & Daniel no Hospital de Amor de Barretos
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Arquivo pessoal Dra. Scylla Duarte Prata
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A historiadora conta que Scylla trabalhava no hospital e em uma clínica particular, de onde tirava recursos para sustentar a família, enquanto Paulo se dedicava exclusivamente ao hospital. Com o aumento da demanda, em 1967, foi instituída a Fundação Pio XII, entidade mantenedora da instituição, que passou a atender apenas pacientes portadores de câncer.
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O hospital enfrentou diversas crises financeiras durante os anos, mas em todas Scylla usou do próprio dinheiro, tanto o adquirido com seu trabalho como o fruto de sua herança, para salvar a instituição. A filha Beatriz lembra que por ser muito cristã, a filantropia e a vontade de ajudar o próximo sempre fizeram parte da vida da mãe.
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"Ela nunca foi apegada a vaidades. Tinha, lógico, a roupa, cabeleireiro, se cuidava muito, estava sempre muito bem arrumada, e o resto do dinheiro era pra distribuir. O tempo e o dinheiro que tinha, ela usava para distribuir, sempre muito generosa tanto no trabalho quanto no ensino."
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Em 2000, durante uma viagem ao Vaticano, Scylla foi abençoada pelo Papa João Paulo II. No momento que representa a fé da centenária, estão também o arcebispo emérito de Botucatu (SP), dom Antonio Maria Mucciolo, e Angelina Mourão, governanta da Casa Episcopal de Barretos.
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Luta pela prevenção
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Durante sua formação, Scylla optou pela ginecologia e fez residência com Domingos Delácio, considerado um grande especialista da área. Nessa época, ela tinha interesse especialmente sobre o câncer de endométrio.
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Tanto em Catanduva quanto em Barretos, Scylla seguiu como estudiosa do tema e foi uma das médicas pioneiras em levar as novidades da prevenção do câncer ginecológico para o interior do estado, como o exame de papanicolau.
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Um dos principais projetos de prevenção foi o executado pela enfermeira Creuza Saure, em 1994. A profissional foi escolhida e treinada por Scylla e o marido e pelo médico Edmundo Mauad. A missão era ir de casa em casa e convencer as mulheres a fazerem o exame.
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"Eu comecei com uma bicicleta, de porta em porta, com uma mesa ginecológica portátil que eu montava dentro da casa da mulher. Eu fazia a coleta do exame e levava para o hospital. O começo da prevenção, de tudo que existe hoje foi assim".
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Creuza Saure, enfermeira do Hospital de Amor em Barretos, em 1964 no projeto de prevenção do câncer
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Arquivo pessoal Dra. Scylla Duarte Prata
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Creuza se aposentou há dois anos, mas se orgulha dos 29 anos que trabalhou no projeto que deu vida ao setor de prevenção do Hospital de Amor.
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Com unidades fixas e móveis, as famosas carretas que andam por todo o Brasil, em especial em zonas afastadas, o hospital oferece os mais diversos tipos de exames preventivos, como mamografia, colonoscopia e também o papanicolau.
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"O projeto ganhou vida, era só um sonho. Esse projeto se tornou realidade, cresceu, a prevenção hoje tem um monte de carretas, unidades fixas, é maravilhoso, mas tudo começou dessa bicicletinha", celebra Creuza.
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Atualmente, as unidades de prevenção fixas estão em mais de 17 cidades, em 12 estados brasileiros.
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Mãe, avó e mulher inspiradora
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Scylla e Paulo são pais de Cristina, já falecida, Paulo, Henrique, que está a frente do hospital atualmente, Beatriz e Clarice.
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A família composta por mais 13 netos e 19 bisnetos sempre foi muito unida, mesmo com a rotina puxada do casal e de Scylla, que se dividia entre atender e cuidar da parte administrativa do hospital.
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"Minha mãe sempre foi uma mãe muito generosa, muito amorosa, ela tinha tanta preocupação com os filhos que ela trabalhava o dia todo, então no café da manhã ela tinha preocupação que todos estivessem bem alimentados. A gente comia bife, leite batido com chocolate e ovo, pra ela ter certeza que os filhos estavam bem alimentados."
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Scylla Duarte com os filhos Paulo Duarte Prata, Beatriz Duarte Prata, Henrique Duarte Prata e Clarice Duarte Prata
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Arquivo pessoal Dra. Scylla Duarte Prata
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A neta Cristina conta que mesmo quando ela e os primos chegavam sem avisar ao consultório da avó, Scylla fazia questão de recebê-los com muito carinho.
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"Na minha infância ela sempre foi muito presente, ela é mineira, então fazia todos aqueles almoços de domingo, que é a família inteira, e eu tenho os almoços muito na memória. A gente ficava muito na casa dela, tinha um parquinho com um pomar do lado da casa, então eu lembro muito da fartura."
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A energia e vontade de viver fazem parte das características marcantes de Scylla. Apaixonada por viagens, ela conheceu diversos países por todos os continentes e levou junto os netos.
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Scylla Duarte Prata em uma safari na África do Sul com a neta Cristina Prata
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Arquivo pessoal Dra. Scylla Duarte Prata
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Cristina, uma das mais velhas, lembra da energia da avó durante uma viagem longa que fizeram juntas pela Europa. A África foi um dos destinos que também ficou marcado na memória da neta.
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"Eu fiz safari com ela, ela tem uma memória muito viva pra mim, ela é uma pessoa que sempre ocupou espaço, ela não é uma pessoa que passou despercebida, pelo contrário, muito alegre, sempre ouvindo muito, sempre me ensinando."
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*Sob supervisão de Thaisa Figueiredo
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Fonte: G1 .