Para a artista, a educação visual é absolutamente necessária para a emancipação das pessoas. "Se você só vê uma pessoa ou um determinado grupo ocupando determinados postos, só vê esse grupo sendo retratado de maneira negativa, você não precisa falar, você não precisa escrever. Você não precisa ler sobre isso: a imagem já está te condicionando", diz.
Rosana Paulino conversou com exclusividade com a Agência Brasil - Tomaz Silva/Agência Brasiltype="_moz" />
A artista e intelectual que até dois meses atrás fez grande sucesso com a exposição Amefricana, no Museu de Arte Latino-Americana de Buenos Aires (Malba), é uma das titulares da Cátedra Pequena África, lançada este ano pela Fundação Getulio Vargas (FGV), no Rio de Janeiro. Ela ministrará o curso livre Arquivo, Memória, Construção Visual e Educação.Rosana Paulino conversou com a Agência Brasil sobre esse pioneirismo acadêmico que direciona para o "empretecimento" da academia e sobre a obra dela - que tem a indignação e o antirracismo como matérias-primas, além de assuntos alvo de debate contemporâneo, como a relação entre comunidades tradicionais e mitigação de mudanças climáticas.
Confira os principais trechos da entrevista exclusiva:
Agência Brasil: Qual é a proposta desse curso? É uma ressignificação de imagens ligadas à escravidão?
Agora, não dá para entrar em um assunto tão complicado assim sem entender o que aconteceu antes. Como se forma o local simbólico para uma determinada população. Como se dá o processo de embranquecimento e de apagamento. Mas só dentro da área da imagem, que é o campo em que atuo.
Então não é em relação à escravidão, porque quando a gente vai falar da população negra, a gente sempre pensa na escravidão, mas tem todo um conjunto de criação, tem toda uma ação dessa população negra que não está simplesmente ligada à escravidão, porque se não a gente reduz demais a situação. Reduz o sujeito negro como se fosse somente dependente desse ato da escravidão, e a população negra é muito mais que isso.
Agência Brasil: Você é uma artista e também uma educadora. A arte é uma ferramenta de educação?
Muitas vezes, a gente não precisa falar nada. Mas se você só vê uma pessoa ou um determinado grupo ocupando determinados postos, só vê esse grupo sendo retratado de maneira negativa, você não precisa falar, você não precisa escrever ler sobre isso, a imagem já está te condicionando.
Agência Brasil: O que você espera como resultado dessas conversas, plantar sementes para novas trabalhos de teor antirracista?
A gente tem que pensar sobre isso: que país nós queremos? O país que nós queremos passa pela construção em uma imagem também. Tudo está para ser feito no Brasil ainda. Por incrível que pareça, em 2024, tudo ainda está para ser discutido nesse sentido no Brasil.
A bandeira do Museu de Arte do Rio, na Praça Mauá, é criação da artista Rosana Paulino - Fernando Frazão/Agência Brasil
Agência Brasil: Essa cátedra da FGV é pioneira. Você está sendo pioneira em um processo pioneiro (Rosana Paulino é a primeira das titulares a desenvolver atividades na cátedra. As outras duas titulares são a professora e cantora lírica Inaicyra Falcão e a poeta e ensaísta Leda Maria Martins). Olhando para daqui a dez anos, você espera que esse tenha sido um caminho para empretecer a academia?
Aqui no Brasil, a gente não faz. Espero que seja o primeiro, que realmente a cátedra chame atenção para essas discussões, para que ajude a empretecer e, principalmente, para que ajude na produção de novos trabalhos que venham discutir esse assunto. Isso é para ontem!
Agência Brasil: Você teve exposições no exterior, como em Buenos Aires e nos Estados Unidos. Qual a percepção que você tem do público que visita as suas obras?
Aconteceu uma coisa muito linda no Malba. [Contrariando] aquela história de que não existe negros na Argentina, as pessoas negras começaram a ir, principalmente as mulheres negras, e começaram a propor rodas de conversa no meio da exposição. Eu fiquei completamente surpresa. Isso mostra o alcance que pode ter uma exposição. Isso que eu procuro sempre com o trabalho, levantar discussões, trazer conversas, colocar o assunto na mesa.
Agência Brasil: Sua obra fala sobre o sofrimento que envolve a diáspora africana, migração em massa forçada e dolorida, racismo que tenta silenciar a presença negra no Brasil. Você vislumbra que é possível que a população afrodescendente possa cicatrizar essa memória?
O Brasil talvez seja um dos principais países a ter a chave para essa questão climática. Populações indígenas, ribeirinhas, quilombolas, são eles que têm o conhecimento para tirar o homem desse abismo, desse buraco. A gente não se reconhecendo como tal, a gente não consegue solução nem para os nossos problemas nem para uma coisa muito maior. Então, não diria cicatrização, acho que a gente tem que colocar o assunto sobre a mesa.
Essa população precisa e merece compensações, se não a gente vai pensar em uma cicatrização de qual maneira? Sem limpar a ferida para depois explodir lá na frente? Então eu não diria cicatrização dessa ferida da escravidão, a gente tem que botar em cima da mesa, abrir e ver quais são as soluções para isso. Como é que a gente vai limpar essa ferida, acomodar as bordas desse tecido que ainda estão separadas, como é que a gente vai fazer essa sutura?
Agência Brasil: O Brasil está muito atrasado nessa assepsia?
Rosana ministrará o curso na Cátedra Pequena África, na Fundação Getulio Vargas - Tomaz Silva/Agência Brasiltype="_moz" />
Agência Brasil: Fora o seu trabalho especificamente, de quais outras formas o Brasil pode avançar nisso?
As coisas estão ligadas. Aqui no Brasil, a gente tem um hábito de ver cada coisa em uma caixinha. Mas está tudo entrelaçado, eu não posso pensar a cultura brasileira sem pensar em manifestação religiosa. É impossível. O que o Brasil faz, muitas vezes, abafa certas condições culturais religiosas, traz de fora um material de quinta [categoria] e coloca isso como se fosse uma matriz nacional, o que não é. E aí joga no lixo aquilo que poderia ter para oferecer para o mundo.
Porque senão a gente vai continuar nisso, uma cópia extremamente mal feita do Ocidente, e sem levantar a cabeça, o que é pior. Uma cópia que aceita tudo quanto é tranqueira que vem de fora, não produz, e com uma capacidade absurda de produção. E principalmente a academia. A academia no Brasil faz isso o tempo todo. Tem que empretecer a academia e descolonizar essa academia. A academia no Brasil, tem hora que dá vergonha: aceita tudo de fora e não propõe nada.
Agência Brasil: No dia do lançamento da cátedra, a escritora Conceição Evaristo disse que os pensadores negros não têm que ter modéstia.
Junta-se a isso o histórico da população negra, o modo como as culturas de matriz populares são relegadas ao segundo plano... isso é um caldo de sujeição a outras culturas – você não se colocar diante do mundo. Somos um país com um potencial absurdo. Só que se a gente não se assume como país, a gente não sai desse buraco. É essencial, sim, que a gente não tenha modéstia.
Agência Brasil: Em Samba da Benção, Vinícius de Moraes diz que "pra fazer um samba com beleza é preciso um bocado de tristeza". No seu trabalho, é preciso ter a memória do sofrimento étnico para criar obras que sirvam de conteúdo antirracista?
Agência Brasil: E se trocar tristeza por indignação?
Agência Brasil: Você já disse que o Brasil não se enxerga no espelho. Não se enxerga ou não quer se enxergar?
Quem é Rosana Paulino
A artista vive em São Paulo, cidade onde nasceu, em 1967. É doutora em Artes Visuais pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP), especialista em gravura pelo London Print Studio, de Londres, e bacharel em gravura pela ECA/USP.
Como artista, se destaca pela produção ligada a questões sociais, étnicas e de gênero. Possui obras em importantes museus, como o Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP), a Pinacoteca do Estado de São Paulo; o Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand (Masp); Museu Afro-Brasil, em São Paulo; Malba e University of New Mexico Art Museum, no Novo México (EUA). Já expôs em cidades como Lisboa, Berlim, Veneza (Itália), Chicago (EUA) e Bruxelas, entre outras.
A Cátedra Pequena África surgiu de uma parceria entre a prefeitura do Rio de Janeiro e a FGV, com a proposta de ser um campo acadêmico para estudo e divulgação de pensadores negros. Possui um conselho consultivo formado pelos intelectuais negros: Ayrson Heráclito (artista e curador), Benedito Gonçalves (ministro do Superior Tribunal de Justiça), Conceição Evaristo (linguista e escritora), Dione de Oliveira (jornalista e diretora da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília (UnB); Jurema Werneck (médica e diretora da Anistia Internacional), Muniz Sodré (sociólogo e escritor), Sonia Guimarães (cientista) e Thiago de Souza Amparo (advogado e professor FGV-SP).
De agosto a outubro, a cátedra realizará os ciclos individuais com as titulares, composto pelos cursos livres e roda de diálogos na Biblioteca Mário Henrique Simonsen. Em novembro, no dia 5, um seminário reunirá as três titulares, quando também serão convidados os participantes do comitê consultivo.
Agencia Brasil