Muito se fala sobre a bilionária dívida de Minas Gerais com a União que o governo Romeu Zema (Novo) pretende repactuar se conseguir autorização da Assembleia Legislativa (ALMG) para aderir ao Regime de Recuperação Fiscal (RRF), cuja validade será de nove anos.
Mas de onde vem esse débito, que o estado afirma girar hoje em torno R$ 156,2 bilhões, e que supera em quase 50% a previsão da receita de Minas para este ano (estimada em R$ 109 bilhões) e representa anualmente cerca de 10% do PIB estadual, valor bem acima do investido em educação e saúde? E como ele chegou a esse número astronômico, 10 vezes maior que a dívida inicial de R$ 14,8 bilhões em 1998?
De acordo com Rodrigo Vieira de Ávila, economista da Auditoria Cidadã da Dívida (ACD), organização não governamental criada para apurar o valor da dívida pública do governo federal e estados, não existe transparência nesses débitos e ninguém sabe dizer ao certo sua real origem e seu verdadeiro valor. “Não existe transparência para dizer que dívida é essa que a sociedade é que tem de pagar”, afirma.
Oficialmente, ela tem origem em um contrato de refinanciamento firmado com a União em 1998, com base na Lei 9496/1997, que assumiu, na época, as dívidas contraídas pelo estado com a extinção ou privatização dos bancos estatais (MinasCaixa, Bemge e Credireal) e com a emissão, nos anos 1990, de títulos públicos que permitiam ao estado pegar dinheiro emprestado no sistema financeiro.
"Não foi feita uma auditoria"
De acordo com o economista, o governo de Minas, ao aderir ao Programa de Incentivo à Redução do Setor Público Estadual na Atividade Bancária (Proes), pegou emprestado recursos com a União para supostamente “sanear” os bancos estatais, antes de vendê-los para a iniciativa privada. “Dizem que esses bancos tinham rombos, que foram assumidos pelo estado, mas não foi feita uma auditoria e ninguém sabe exatamente a origem desses rombos”, comenta.
Em Alagoas, segundo o economista, uma auditoria apontou que as dívidas dos bancos públicos privatizados pelo estado tinham origem em empréstimos feitos por usineiros e não pagos. “Em Minas não sabemos”, afirma Ávila.
No caso dos títulos, explica o economista, também seria necessária uma auditoria para verificar o efeito da política monetária do Plano Real, lançado em 1994, nas taxas que incidiam sobre eles, por muitas vezes altíssimas e acima de 50%.
Entenda o que é RRF
- O Regime de Recuperação Fiscal (RRF) foi instituído em 2017, por meio da Lei Complementar 159/2017, aprovada pelo Congresso Nacional, para estados que enfrentam graves problemas de caixa. Para aderir ao RRF, é necessária autorização da Assembleia Legislativa e apresentação de plano prévio para o Ministério da Fazenda.
- O RRF refinancia as dívidas dos estados desde que os governos se comprometam a promover ajustes fiscais no prazo máximo de nove anos.
- Entre os ajustes estão a venda de empresas estatais, congelamento de reajuste para o funcionalismo, estabelecimento de teto de gastos, criação de previdência complementar e a equiparação das regras do Regime Próprio de Previdência Social (RPPS), no que couber, às regras dos servidores da União.
Além dessa origem desconhecida, não há também informações claras sobre por que a dívida saltou de R$ 14,8 bilhões para R$ 156,2 bilhões, valores divulgados na semana passada pelo governo de Minas: um acréscimo de quase 1.000%.
Dados da Secretaria do Tesouro Nacional (STN), que mantém em sua página na internet uma tabela com a evolução da dívida dos estados até 2022, mostram que, em apenas cinco anos, o débito de Minas Gerais dobrou, passando para R$ 30,3 bilhões. Em dois anos seguidos (2008 e 2009), ela ficou congelada em R$ 48,8 bilhões, saltando no ano seguinte para R$ 54,8 bilhões.
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Essa mesma tabela também aponta os pagamentos feitos por Minas Gerais e revela que, entre 1998 e 2021, o estado pagou R$ 45,8 bilhões da dívida inicial e, mesmo assim, ela seguiu elevada e calculada em R$ 103,8 bilhões. No ano seguinte, em 2022, ela foi reduzida para R$ 89,1 bilhões. Dessa data em diante, não há atualização até o recente valor de R$ 156,2 bilhões anunciado pelo governo.
Incertezas no caminho da dívida
De acordo com o economista, o motivo da queda para R$ 89,1 bilhões é desconhecido. “Também não sabemos como o estado chegou aos números divulgados recentemente”, afirma. Mas o aumento elevado do estoque pode ser creditado à política de juros sobre juros adotada pela União na cobrança das dívidas. Em 2014, a taxa de correção usada foi alterada, por meio de uma lei, para um índice menos oneroso.
A reportagem procurou as Secretarias de Estado da Fazenda, de Governo e da Comunicação, mas o pedido de entrevista sobre a dívida de Minas não foi atendido. O pagamento das parcelas dessa dívida atual divulgada pelo governo estadual está suspenso desde o fim de 2018, por decisão liminar do Supremo Tribunal Federal (STF).
Efeitos da Lei Kandir
A economista Eulália Alvarenga, especialista em dívida e gestão pública, defende que, além da revisão dos valores da dívida, também seja debatido no âmbito da negociação dos débitos de Minas, aspectos importantes como a cobrança de juros dos estados por parte da União e os efeitos da Lei Kandir no endividamento do estado.
“Por que a União cobra juros, e elevados, dos estados se ela não é banco”, questiona Eulália. Além disso, ela lembra que Minas é um dos entes mais endividados devido às desonerações da Lei Kandir, aprovada em 1996, que impôs aos estados, principalmente aos exportadores de produtos primários e semielaborados (minérios e agropecuária), caso de Minas Gerais, a desoneração do ICMS nas exportações de tais produtos para resolver um problema conjuntural (balança comercial e câmbio) do país, com a promessa de ressarcir futuramente os estados pela perda.
“Mas esse ressarcimento não veio, o que impactou negativamente as contas de Minas e impediu a amortização da dívida”, afirma. Segundo ela, até 2015 Minas perdeu R$ 135 bilhões com a Lei Kandir, valor próximo da dívida atual divulgada pelo estado. Poderia, segundo ela, ter sido feito um acerto de contas dessas dívidas, mas o estado assinou em 2020 um acordo com a União para pôr fim à disputa judicial em torno da Lei Kandir em troca de receber R$ 8,7 bilhões até 2037.
“Essa dívida nem poderia existir. Ela já foi paga há muito tempo”, afirma a economista, que defende uma saída política para a dívida e não uma renegociação que, de acordo com ele, não vai pôr fim ao débito, apenas estender o prazo, deixando a conta para governos futuros. “O regime de recuperação fiscal não recupera nada. Ele apenas joga a dívida para outro governo pagar”, afirma.
Prazo para adesão
O estado tem até 20 de dezembro para aderir ao RRF. O Projeto de Lei que autoriza essa adesão foi desarquivado pela ALMG em 9 de outubro. Ele foi apresentado pelo governador em 2019, durante seu primeiro mandato, mas foi arquivado pelo Legislativo no fim da legislatura passada sem votação.
Os deputados não quiseram apreciar o projeto, pois o texto era genérico e não explicava quais as contrapartidas que o estado teria que adotar para aderir ao regime. Semana passada, Zema enviou para o Legislativo o detalhamento das contrapartidas que estão sendo estudadas pela equipe técnica da Assembleia e devem ser apresentadas para os parlamentares e para a sociedade nessa semana.
Zema tem dito, por meio de comunicados e de seus secretários e aliados no Legislativo, que a adesão ao RRF é fundamental para o estado “conseguir equacionar a dívida e ter sustentação fiscal para a continuidade das atividades que envolvem a administração pública nos próximos anos e governos”.
Deputados estudam tema
A Assembleia Legislativa de Minas Gerais marcou para a quinta-feira e sexta desta semana reuniões para discutir o endividamento do estado. Na pauta dos debates estão a evolução da dívida e seus impactos nas políticas públicas, assim como a proposta de adesão ao Regime de Recuperação Fiscal enviada pelo governador Romeu Zema. O presidente da ALMG, deputado Tadeu Martins Leite (MDB), também anunciou que serão feitas audiências com a presença de secretários e servidores do governo, de representantes da União e de outros estados que aderiram ao RRF.
Estadão