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Gerais

A etnia identificada por sua relação com as águas que rema contra a seca

Eles já foram os senhores da terra, em um tempo no qual limites eram dados apenas pelo alcance de seus músculos, no máximo pelos domínios de outros povos.



Com o objetivo de mostrar a realidade desse povo, o Estado de Minas percorreu 2 mil quilômetros até o Norte mineiro para chegar a São João das Missões, cidade com maior percentual de população indígena da Região Sudeste e onde se situa a Terra Indígena Xakriabá. Lá, testemunhou o cotidiano de uma gente que tenta driblar a secura em busca de sua sobrevivência física e cultural. Acompanhou ainda protestos contra a ameaça mais recente ao desejo de resgatar suas terras e cultura: a tese do marco temporal, discussão que se dá na distante Brasília, mas que coloca em risco não apenas territórios conquistados a duras penas, mas também compromete o anseio do povo de retornar às margens do São Francisco. 
Bons de remo”: esse é o significado do nome xakriabá na língua local. Mas quem pretende conhecer a reserva onde mais de 8 mil indígenas vivem atualmente em São João das Missões, no Norte de Minas, apenas com essa referência, se surpreenderá com a paisagem que circunda as 37 aldeias do território. A equipe do Estado de Minas partiu de Januária, às margens do Rio São Francisco, e percorreu cerca de 80 quilômetros até chegar às terras dos xakriabás, em um caminho em que é impossível não perceber a transformação do cenário – desde o verde e irrigado das proximidades do leito à aridez de um Cerrado onde predominam as cores marrom-acinzentadas da poeira nas estradas de terra, que cortam cursos d’água secos e às margens das quais sobrevivem árvores retorcidas.
Mesmo acostumado com as características do Norte de Minas, o povo xakriabá sofre com o aumento das temperaturas e o desmatamento, que tornaram a secura mais crítica na região nas últimas décadas. As alternativas para tentar driblar a escassez envolvem cisternas para armazenar a água das chuvas, poços artesianos e, no limite, caminhões-pipa abastecidos em cidades vizinhas. Em setembro, mês que se espera derradeiro do período de secas, a situação é tão grave que até mesmo o motorista do caminhão que abastece as aldeias vive com recursos racionados dentro de casa.
O caminhoneiro Antônio Nunes Barbosa, ele mesmo de origem xakriabá, falou à reportagem antes da jornada de quase 50 quilômetros terra indígena adentro, para levar água à Aldeia Vargens. “É raro ter água dentro de casa. O pessoal está usando as bombas (dos poços artesianos) durante o dia e não liga mais à noite e estamos há mais de um mês assim. A sorte é que temos um reservatório grande, de 16 mil litros, mas agora até isso já está acabando. E é de lá a água que usamos para tudo: para cozinhar, beber, cuidar das duas crianças pequenas em casa, sustentar umas galinhas, uns porquinhos”, contou. Antônio acrescentou ainda que a água que vem dos poços tem grande quantidade de calcário, abundante na região, e que o consumo não tratado causa problemas renais recorrentes entre moradores.



Seca apaga traços e identidade


“Tem um tempinho atrás, uns quatro, cinco anos, que morreram umas três crianças afogadas em lagoas. Lagoas pequenas, dessas feitas para segurar água da chuva. As crianças iam tomar banho e acabaram se afogando. É como uma ironia, não é? Os ‘bons de remo’ morrendo afogados em lagoas que não davam um metro e meio de altura. Isso tudo é fruto da violência contra o povo.” O relato do artista Nei Leite Xakriabá, mestre pelo Programa de Pós-graduação em Artes da Escola de Belas Artes (EBA-UFMG) e morador da Aldeia Barreiro Preto, na Terra Indígena Xakriabá, expõe o distanciamento das novas gerações com a cultura originária da etnia.
A fala do ceramista e professor que se dedica à perpetuação de valores tradicionais dos xakriabás indica que, para além da falta de recursos hídricos, o afastamento do povo que carrega em seu nome a ligação embrionária com o rio representa uma violência cultural. Hoje, há gerações de indígenas que não conseguem manter um traço identitário fundamental como o contato com cursos d’água.
Originários do Cerrado, os xakriabás estão habituados a um regime de secas e chuvas, mas o aumento das temperaturas e do desmatamento destruiu nascentes e fez desaparecer cursos d’água antes perenes dentro da reserva. A reportagem percorreu cerca de 400 quilômetros dentro da Terra Indígena Xakriabá em meados de setembro e registrou a situação vivida por milhares de pessoas que já não sabiam o que era chuva havia mais de cinco meses.
Em entrevista ao EM, o prefeito de São João das Missões, Jair Cavalcante (Republicanos), apontou a disponibilidade hídrica como um dos desafios centrais de sua gestão. Ele afirma que as alternativas atuais se limitam ao uso de cisternas para contenção de águas da chuva, instalação de poços artesianos e circulação de caminhões-pipa dentro da terra indígena, como forma de enfrentar o processo de estiagem vivido há décadas na região.
“Tínhamos riachos que corriam o ano todo e já não correm mais. Lagoas que, às vezes, tinham água o ano todo, hoje já não têm mais. A diminuição desses rios e dessas nascentes dentro da reserva fez com que muita gente partisse para a solução do poço artesiano. Porém, como a comunidade é muito grande, o investimento não foi feito como deveria. Acho que o ideal é ter um poço para cada comunidade, só que hoje a gente tem um poço que às vezes atende 10, 15 cmunidades”, afirmou.

Do avanço das bandeiras  chacina de líderes


Originários do Norte de Minas, os xakriabás são um dos povos indígenas que há mais tempo mantêm contato com culturas distintas. A relação marcada por violência e supressão de direitos explica a localização atual das terras demarcadas para o grupo e até mesmo os traços físicos dos que hoje se identificam como pertencentes à cultura que já habitava a região compreendida entre os rios São Francisco, Peruaçu e Itacarambi, bem antes da chegada dos colonizadores.
As primeiras documentações de contato entre os xakriabás e descendentes de europeus datam do fim do século 17. Naquele período, ficou marcada a figura do bandeirante paulista Matias Cardoso, que liderou a expansão de colonos pelas margens do Rio São Francisco, terras mais férteis e favoráveis para o uso na agropecuária. Começa então um processo longo e de efeito, até aqui, permanente, de expulsão dos indígenas do leito do principal manancial da região.
Doutor em História e professor da Faculdade de Educação da UFMG, Pablo Lima explica que, apesar do histórico de séculos de usurpação das terras no leito do São Francisco, o rio segue como elemento identitário importante para a cultura xakriabá. O pesquisador, que atua no curso de Formação Intercultural para Educadores Indígenas, traça um breve panorama do histórico de disputa pela terra na região.
“A colonização portuguesa do vale do Rio São Francisco, desde a foz, na atual divisa de Sergipe com Alagoas, até suas nascentes na Serra da Canastra, em Minas Gerais, nos séculos 17 e 18, teve um grande impacto sobre os povos indígenas que habitavam aquele território havia milênios, entre eles os xakriabá. Com a ocupação por colonos brancos e negros escravizados das margens do São Francisco, importante rota fluvial de comunicação e transporte por milhares de léguas, os povos indígenas enfrentaram invasões de suas terras e muita violência. Mas, mesmo assim, nunca se afastaram completamente do rio, que continua sendo uma entidade vital para os xakriabás”, explica.
A alta concentração de xakriabás em São João das Missões, uma cidade não banhada pelo São Francisco, é fruto do movimento de afastamento dos indígenas do principal curso d’água da região. A própria história da Terra Indígena Xakriabá, demarcada em 1987, data de eventos que marcaram a relação entre brancos e povos originários, mais de dois séculos antes da retomada legal de parte dos direitos dos indígenas por seu território.

A “doação” recebida a Coroa Portuguesa


O atual território demarcado em São João das Missões, além de estar cerca de 40 quilômetros distante do Rio São Francisco, é cerca de dois terços menor do que o reivindicado pelos xakriabás. A origem da demanda por mais terra remonta ao ano de 1728, quando a Coroa Portuguesa lhes “doou” um terreno delimitado pelos rios Itacarambi, Peruaçu e São Francisco, pela Serra Geral e Boa Vista.
A destinação ocorreu após a participação dos xakriabás, ao lado do Estado, em um conflito contra os caiapós, povo apontado como um risco para a ocupação portuguesa na região. Em troca do apoio, a terra foi formalmente “doada” ao povo xakriabá. Mas o ato protocolar não significou uma desaceleração na fome dos posseiros, que seguiram tomando conta das terras férteis da região. Depois de pressões dos indígenas, a doação foi registrada em cartório em Ouro Preto, então capital de Minas Gerais, em 1856. Mas nem assim houve resultado quanto à ocupação das terras por quem as tinha por direito histórico e, a partir de então, cartorial.
A mobilização dos xakriabás no século 20 prosseguiu no sentido de assegurar o direito a uma ocupação segura de seu território tradicional. Em 1979 houve um dos principais avanços neste sentido, com a demarcação da Terra Indígena Xakriabá pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai). No entanto, a homologação do local e a retirada dos posseiros só se deu definitivamente em 1987, meses após chacina executada por capangas armados de um fazendeiro da região, que vitimou três lideranças indígenas, entre elas Rosalino Gomes pai do atual cacique Domingos e do ex-prefeito de São João das Missões, José Nunes de Oliveira (PT).


Uma cidade que conta uma
parte sombria da história


À primeira vista, São João das Missões é uma cidade como outras centenas incrustadas no calor do Cerrado norte-mineiro. Mas trata-se de uma localidade que reúne especificidades que ajudam a contar, em um pequeno espaço de terra, longos capítulos da história brasileira. A começar pelo fato de manter, mesmo após a diáspora para os centros urbanos do país, a maior parte de seus habitantes na zona rural. É lá onde está outra característica peculiar do município: os povos indígenas, antes a totalidade da população do que veio a ser o Brasil e hoje apenas uma parcela residual dos 214 milhões de pessoas que vivem no país, representam cerca de 80% dos habitantes missionenses, o maior percentual do Sudeste e muito acima do segundo lugar.
Habitantes originários do atual território brasileiro, os indígenas representam hoje apenas 0,83% da população total do país, ou cerca de 1,7 milhão de pessoas. Os dados foram divulgados em agosto deste ano a partir do Censo de 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). A mesma pesquisa mostra que, em São João das Missões, a realidade dos xakriabás é diferente, sendo ampla maioria dos habitantes da cidade – 10,3 mil dos 13,8 mil moradores do município. Essa concentração retrata séculos de história do contato dos indígenas com outros povos, marcada por violências refletidas na seca, e confere aos xakriabás predomínio na organização política do município.
Dos 10.398 indígenas de São João das Missões, 8.796 vivem dentro do perímetro da Terra Indígena Xakriabá, situada nos limites do município. A cidade é líder disparada no percentual de indígenas em relação à população total, representando 79,84%. Na segunda posição da lista está Santa Helena de Minas, no Vale do Mucuri, onde 20,87% da população se identifica como povo originário do país.


Uma nova aposta na
terra e nas tradições

Em entrevista ao Estado de Minas, o prefeito de São João das Missões, Jair Cavalcante (Republicanos), falou sobre o potencial que enxerga na cidade apesar dos indicadores de pobreza. O Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do município é de 0,529, o menor entre os 853 de Minas Gerais. Mas o mandatário, de origem xakriabá, confia nas tradições do povo indígena como fonte de riqueza cultural e material para melhorar a situação na cidade.
“Havia um discurso, há um tempo atrás, que falava que Missões tinha o pior IDH, que era a cidade mais pobre. Na verdade, São João das Missões não é pobre, mas é uma cidade que precisa de lapidações. Nós temos muitos recursos naturais dentro da própria comunidade indígena, e precisamos trabalhar esses produtos, fazer com que eles circulem na nossa região. Temos a cagaita, o maracujá do mato, o umbu, muitas frutas que poderiam gerar recursos na região. Por ter 80% da população indígena, temos também um potencial muito grande na área dos produtos naturais e também no turismo”, enumera.
Para Cavalcante, é importante que a cidade passe a gerar alternativas para movimentar a economia. Ele aponta a falta d’água como um complicador para o desenvolvimento agrícola e cita dificuldades na criação de empregos com carteira assinada. Parte significativa do dinheiro que circula na cidade vem de ações governamentais como o Bolsa Família. De acordo com o CadÚnico do governo federal, em setembro moradores da cidade receberam cerca de R$ 1,9 milhão a partir do programa, que beneficia quase 8 mil habitantes, mais de 60% da população local. 

Estadão

Gerais

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