G1
Economista israelense Oded Galor apresenta em 'A Jornada da Humanidade' uma tentativa de desvendar as forças fundamentais que determinaram a evolução das sociedades humanas a partir do aparecimento do homo sapiens. Economista israelense Oded Galor é autor de 'A Jornada da Humanidade'Peter Goldberg/DivulgaçãoO economista israelense Oded Galor se propôs uma missão que pode muito bem ser classificada de ambiciosa: explicar como o homo sapiens foi capaz de gerar tamanha riqueza e desenvolvimento tecnológico ao longo da história e responder por que essa riqueza foi distribuída de forma tão desigual no mundo.Ele é professor da Universidade Brown, nos Estados Unidos, e autor do livro "A Jornada da Humanidade" (editora Intrínseca, 2022), lançado recentemente no Brasil.Por ter desenvolvido durante três décadas a Teoria Unificada do Crescimento, Galor foi apresentado pelo jornal alemão "Frankfurter Allgemeine" como um forte candidato ao Prêmio Nobel de Economia. "A teoria é uma tentativa de desvendar as forças fundamentais que determinaram a evolução das sociedades humanas a partir do aparecimento do homo sapiens", diz o economista, em entrevista à BBC News Brasil.A Teoria Unificada do Crescimento, de forma bastante resumida, pode ser descrita da seguinte forma:O cérebro do homo sapiens deu vantagem sobre outras espécies e proporcionou a introdução de inovações.Inovações possibilitam mais recursos para um grupo humano. Com mais recursos, mais crianças nascem, mais crianças conseguem sobreviver, e a população aumenta.Consequentemente, com uma população maior, em determinado momento os recursos para sustentá-la se tornam insuficientes e há um retorno às condições anteriores de pobreza. Esse ciclo se repete por centenas de milhares de anos.Mas a revolução industrial no século 19 criou a necessidade de desenvolvimento educacional. Assim, as famílias optam por menos filhos para investir em formação escolar, e as taxas de fertilidade caem.Para Galor, o progresso tecnológico desde então se converteu em mais prosperidade e não em uma população maior.No entanto, as desigualdades de riqueza entre nações persistem por fatores como geografia, instituições locais, cultura, diversidade genética e impactos da revolução agrícola.Sua abordagem "macrohistórica" levou a muitas comparações com outro autor israelense, Yuval Noah Harari. Na capa da edição brasileira aparece uma frase do jornal francês "L'Express" que de cara remete ao livro do conterrâneo: "[A Jornada da Humanidade é] Um novo Sapiens!". O economista concorda que o escopo de sua obra tem semelhanças com o famoso best-seller, mas faz questão de se distanciar da metodologia e das conclusões oferecidas por Harari:"O meu livro é baseado em pesquisas científicas e o de Harari é baseado em especulações, intuições, elementos não necessariamente corretos tecnicamente ou que pelo menos a comunidade científica está em desacordo." "E a segunda parte do meu livro, que é basicamente discutir as raízes da desigualdade, não está presente em 'Sapiens'. Meu livro baseia-se em 30 anos de extensa pesquisa sobre o tema, 30 anos em que teorias foram desenvolvidas e cada elemento dela foi testado empiricamente."Harari já admitiu que seus livros têm informações incorretas (ele chegou a colocar em seu site uma lista com erratas), mas disse que esses equívocos não comprometem a lógica principal de seus argumentos. Veja abaixo as explicações de Galor sobre a trajetória de produção de riqueza e formação da desigualdade ao longo da história.A agricultura faz surgir a elite do conhecimentoNa China, agricultura com domesticação de plantas começou há cerca de 10 mil anosGetty Images/via BBCO homo sapiens surgiu há cerca de 300 mil anos na África. Seu cérebro diferenciado lhe deu vantagem sobre outras espécies, mas a evolução foi bastante lenta até a humanidade alcançar o estágio de domínio sobre a natureza. Apenas 12 mil anos atrás, ou seja, só nos últimos 4% dessa trajetória aconteceria a revolução que fez com que o homo sapiens se tornasse o centro do mundo.A revolução agrícola ou neolítica, além de tirar o ser humano do estágio de caça e coleta, levou a um ciclo de inovações que representou imenso avanço tecnológico. Uma mudança crucial de consequências nem sempre positivas.Galor explica que "durante esse processo, o ser humano primeiro domestica plantas e animais, e isso permite a transição para a agricultura". "Nesse período, sociedades começam a se organizar em torno da produção agrícola e, sob certas circunstâncias, também é aberto um espaço para um grupo de indivíduos dedicar seu tempo ao desenvolvimento da ciência, do conhecimento e das línguas."A escrita, por exemplo, surgiu para contabilizar grãos e registrar a distribuição de porções de alimento."Isso marca o aparecimento de uma elite do conhecimento, permitindo que as sociedades tivessem uma vantagem tecnológica que abrigasse populações maiores e o surgimento de cidades e Estados."A influência da geografia sobre o desenvolvimentoComo um dos elementos centrais de sua tese, o economista israelense defende que as vantagens geográficas — que deram condições melhores para desenvolver a agricultura — foram determinantes para as diferenças de riqueza entre os países até hoje."Não é acidente que a revolução neolítica tenha ocorrido em diferentes épocas nas regiões do globo, com diferença de milênios", diz.A biodiversidade de cada localidade determinava o aparecimento de um grande número de plantas e animais domesticáveis que criavam as circunstâncias para a agricultura. E a Eurásia saiu na frente. "Ela tinha uma vantagem sobre outros continentes por duas questões. Uma era a biodiversidade propícia, mas a outra foi a questão da orientação leste-oeste do continente." Sem barreiras significativas, práticas agrícolas eram copiadas ao longo de latitudes semelhantes, afirma Galor."Essas diferenças geográficas e de momento de adoção e evolução da agricultura influenciam a grande diferença na economia mundial em termos de sofisticação tecnológica e de dominação, no sentido de que as sociedades que adotaram a agricultura antes permaneceram tecnologicamente mais avançadas do que outras."Mas, de acordo com Galor, a vantagem de lugares como o Crescente Fértil (uma faixa que vai do Egito, passa pelo Oriente Médio e chega ao Iraque), a primeira região a adotar a agricultura, foi perdida a partir do século 16, quando o setor agrícola entrou em declínio gradual e começou a abrir espaço para o setor urbano.Houve também nesse período o início da era das grandes navegações, dominada pelos europeus.A Peste Negra e a formação de instituiçõesOutro item da tese de Galor para explicar a disparidade de riquezas está na formação de instituições voltadas para garantir a segurança de trocas comerciais — o que levaria a um maior desenvolvimento econômico de uma sociedade. O progresso proporcionado pela agricultura tornou alguns grupos mais numerosos e complexos. A implementação de moedas únicas, a proteção a direitos de propriedade e um conjunto de leis aplicadas de maneira uniforme organizaram essas sociedades com um ambiente favorável para negócios.Ele lembra que eventos inesperados também podem influenciar esse processo. E usa um acontecimento histórico de grande magnitude para ilustrar como a formação das instituições inglesas levou o país a liderar a Revolução Industrial.A Peste Negra chega à Europa em 1347. Em um período muito curto, aniquila 40% da população europeia daquele tempo. Há uma redução dramática na força de trabalho, particularmente na Inglaterra, que já tinha no período um setor urbano relativamente desenvolvido."Para manter a força de trabalho, a aristocracia teve que fazer concessões para que ficasse mais atraente permanecer no campo. Como resultado, vemos o declínio do sistema feudal da época. Vemos a emancipação de grande parte do trabalho e gradualmente o desenvolvimento dos direitos de propriedade fora da aristocracia. Isso pode ter levado a uma industrialização precoce na Inglaterra antes de outros lugares", afirma.Galor defende que o predomínio dessas instituições na Inglaterra protegeu comerciantes e empresários, e não proprietários de terra que evitariam o progresso tecnológico e tentariam se perpetuar no poder.A Revolução Industrial muda curso de 300 mil anosSegundo Oded Galor, a Revolução Industrial interrompeu um ciclo de centenas de milhares de anos de estagnaçãoGetty Images/via BBCA Teoria Unificada do Crescimento aponta que a ruptura de um ciclo de 300 mil anos de estagnação na história da humanidade ocorreu com a chegada da Revolução Industrial na Inglaterra, há cerca de 200 anos."Quando você olha para as evidências, está bastante aparente que, em mais de 99,9% da jornada da existência humana, as sociedades viveram no que definimos como estagnação malthusiana", afirma Galor.Ele se refere à tese do economista Thomas Malthus — muitas vezes associada a programas de controle populacional e alvo de fortes críticas."A razão pela qual eu apresento Malthus de forma neutra é que, na verdade, ele capturou muito bem o que aconteceu em quase toda a história da humanidade." É o ciclo, explica Galor, em que uma nova tecnologia proporciona mais recursos, mas também o aumento de um grupo. Isso dificulta, após um tempo, a garantia do bem estar material para essa população de número maior."Dessa forma, o progresso tecnológico era convertido em mais pessoas em vez de promover melhores padrões de vida", diz.A revolução industrial muda isso porque leva a sociedade a lidar com um ambiente tecnológico de rápida mudança, segundo o economista. "Os indivíduos precisam gastar dinheiro em educação. No momento em que o investimento em capital humano começa ocorrer, as famílias são muito pobres para investir na educação de seus filhos. Assim, precisam usar um outro elemento de restrição orçamentária, que é o tamanho de suas famílias.""Vemos um declínio dramático nas taxas de fertilidade. E, dessa forma, o processo de crescimento é liberado do efeito de contrapeso do aumento da população."Os países que começaram investiram em uma população com formação educacional superior são os que conseguiram acumular mais riquezas, de acordo com a tese.Mas ele aponta para melhoras que ocorreram nesse período mesmo em países pobres. Cita índices como o aumento de 14 vezes da renda per capita no mundo em apenas um século e o avanço nas condições de vida — 250 anos atrás, quase um quarto dos recém-nascidos não chegava a completar um ano.O peso do colonialismo e da escravidão em lugares como o BrasilGalor diz que o colonialismo e a escravidão tiveram um peso para "determinar o ritmo de giro das rodas da mudança". Embora não reserve um capítulo específico de "A Jornada de Humanidade" para esses fatores, ele ressalta que o desenvolvimento das forças coloniais foi financiado pela extração de recursos do Novo Mundo e a exploração do comércio de escravos. E, numa fase posterior, puderam se especializar na produção de bens manufaturados em vez de se limitar à produção agrícola. Por outro lado, as colônias foram forçadas a se especializarem na produção de matéria-prima e bens agrícolas. Essa limitação atravancou o desenvolvimento tecnológico, industrial e, segundo sua lógica, educacional. Nisso também entra o peso da formação de instituições, como explicado antes."No Brasil, vemos o surgimento de instituições extrativistas que são projetadas para manter o status quo e a desigualdade", observa o israelense. "O colonialismo afeta as instituições brasileiras hoje, afeta a coesão social do país, afeta a confiança no governo e entre indivíduos. Em algumas sociedades, o colonialismo explica uma porção significativa das desigualdades entre os países."Galor diz que o tipo de agricultura surgida na América do Norte não exigia grandes plantações, o que levou a uma menor concentração da propriedade da terras. Isso, para ele, levou gradualmente ao surgimento de instituições mais democráticas. "Dessa forma, as instituições podem ser o resultado do tipo das produções agrícolas em diferentes lugares do mundo", afirma.Mas o economista enfatiza sua visão de que o colonialismo surgiu da diferença de desenvolvimento que já existia antes. "De forma que se queremos entender o desenvolvimento do mundo, nós temos que nos perguntar, por que algumas sociedades conseguiram colonizar outras?"Influências culturais e genéticasNormas culturais, que são os valores compartilhados, crenças e preferências características de uma sociedade, influenciam em seu desenvolvimento, teoriza Galor.Ele cita em seu livro que uma luta interna no judaísmo 2.000 anos atrás acabou por incentivar a alfabetização universal e se formou uma obrigação moral para pais providenciarem educação aos filhos. Isso criou um forte valor para o estudo nesse grupo.Traços que promoveram mais cooperação dentro de uma sociedade ou um pensamento voltado para o futuro também representaram influência no desenvolvimento econômico, segundo o economista. Críticos apontaram que nesse ponto Galor se torna "especulativo e dúbio" em sua teoria unificada.Há ainda mais restrições sobre sua hipótese de que a diversidade genética e cultural em uma sociedade tem bons efeitos (pela "polinização cruzada" de ideias, de mais saídas para os problemas) e outros considerados ruins (menos coesão social).Biólogos e antropologistas consideraram problemático estabelecer uma relação causal entre diversidade genética/cultural e sucesso econômico, mas Galor afirma que há uma interpretação superficial das técnicas empíricas empregadas.Crescimento: dádiva ou desgraça?O economista, que muitas vezes é definido como um "otimista", defende o crescimento econômico mundial dos últimos 200 anos como uma etapa de imenso progresso da humanidade, como o aumento da renda per capita e a diminuição da mortalidade infantil.Galor aponta que, mesmo nos países em que a pobreza ainda é bastante presente, a conjuntura social teve uma melhora sensível na comparação com 100 ou 200 anos atrás.Mas a ânsia por crescimento que marca o capitalismo moderno (iniciado com a revolução industrial) também está relacionada à crise climática que pode levar o planeta à devastação e até mesmo a extinção do homo sapiens."Bem, a questão é se definimos a progressão da humanidade como algo que provoca o tipo de catástrofe que vemos no momento na forma da mudança climática e talvez até na forma da inteligência artificial que vai tirar o lugar de muitos trabalhadores da sociedade", diz Galor."Minha visão é diferente: fizemos muitos progressos. O progresso foi tremendo, as condições de hoje parecem irreais se comparadas ao que existia antes. E isso está se manifestando de forma perceptível. Não é que não haja desafios a serem enfrentados. Mas eles podem ser superados desde que estejamos alertas sobre as consequências. Acho que seremos capazes de mitigá-los e permitir que a prosperidade humana continue seu caminho."