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O crânio com perfuração quadrada que confirmou que os incas realizavam cirurgias complexas


A descoberta da peça que mudou a forma como os antropólogos enxergavam civilizações antigas aconteceu quase por acaso — e tem relação com a Guerra Civil americana. O crânio em ilustração no livro de Squier — peça data entre 1400 e 1530 d.C.

Wellcome Collection/Via BBC

Em 1864, o americano Ephraim George Squier viveu uma experiência insólita.

Ele segurou nas mãos a primeira evidência inquestionável de algo que os cientistas há muito tempo julgavam impossível: a neurocirurgia antiga.

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A descoberta foi um acidente — e se deveu, em certa medida, ao cocô de pássaros.

Com a eclosão da Guerra Civil dos Estados Unidos em 1861, garantir fertilizantes para o cultivo de alimentos se tornou uma necessidade estratégica para o então presidente Abraham Lincoln.

E o melhor fertilizante do mundo na época era encontrado nas montanhas de algumas ilhas da América do Sul, que durante séculos haviam acumulado guano, um substrato que tem origem nas fezes de animais e é rico em nitrogênio e fósforo.

Foi por causa do guano que, em 1864, Lincoln enviou uma delegação ao Peru, da qual Squier fazia parte.

A dama 'do Grande Canal'

Garantido o suprimento de fertilizante, o diplomata disse à mulher que voltasse sozinha para Nova York. Apaixonado por arqueologia, ele decidiu ficar no país para se dedicar a pesquisas.

Depois de um ano viajando, percorrendo desde o litoral até as florestas, e escalando os picos dos Andes, ele chegou a Cusco, uma "altiva, porém isolada cidade de montanha".

Era um lugar ao qual se demorava mais para chegar e com quatro vezes mais "incômodos e fadiga", a partir da capital peruana, do que se viajasse de Lima até Nova York, ele escreveu no livro Peru: Exploração e Incidentes de Viagem na Terra dos Incas.

Ephraim George Squier (1821-1888) foi jornalista, diplomata e arqueólogo

Getty Images/Via BBC

Depois de descrever detalhadamente os magníficos sítios arqueológicos que encontrou na região, assim como a cidade, sua história, população e aspecto moderno, ele se deteve em um lugar:

"Vou me referir especialmente à residência da senhora Zentino, senhora que residia na Praça de São Francisco, cuja atenção aos estrangeiros era proverbial, e que estabeleceu uma honrosa reputação como colecionadora do melhor e mais valioso museu de antiguidades no Peru."

"Esta casa seria chamada de 'palácio' até em Veneza, se não fosse por sua arquitetura, certamente por sua extensão. Na amplitude de seus cômodos e em seus ricos e variados conteúdos e decoração, louvavelmente poderia ser comparada com algumas das mais belas do Grande Canal."

Museu de curiosidades

A "señora Zentino" era María Ana Centeno de Romainville (1816/1817-1874), uma mulher enriquecida pela "leitura frequente" e que começou a colecionar desde jovem, com uma "paixão que beirava a loucura", segundo conta a pioneira educadora peruana Elvira García y García em seu livro A Mulher Peruana Através dos Séculos (1925).

Esse fascínio a levou a reunir um tesouro com peças de diferentes lugares, a ponto de ter um verdadeiro "museu histórico-arqueológico, por meio do qual era possível conhecer toda a história do Peru em suas diferentes épocas".

Além de antiguidades pré-colombianas feitas de pedra, cerâmica e metais preciosos, havia desde um mosaico romano e objetos japoneses até pássaros empalhados e obras misteriosas. Afinal, seu objetivo não era "criar um museu arqueológico — mas, sim, um de curiosidades", escreveu García y García.

O "palácio" da senhora Zentino era um ponto de encontro parecido com os salões que existiam na Europa do Iluminismo. Era onde a elite cusquenha e convidados estrangeiros proeminentes se reuniam para falar sobre ciência, arte e literatura.

Um deles foi Squier, e foi numa dessas ocasiões que colocou as mãos naquela joia inusitada que mudaria a história da cirurgia.

"De certa forma, a relíquia mais importante na coleção da sra. Zentino é o osso frontal de uma caveira, do cemitério inca no Vale de Yucay", escreveu o americano.

O crânio

O que chamou sua atenção na peça foi um buraco quadrado de 15x17mm. Não era natural, pensou: a natureza não costuma trabalhar em ângulos retos.

Ele também achou ter visto sinais de crescimento de novos ossos, indicando que a pessoa não apenas estava viva durante a perfuração, como havia sobrevivido.

Um pensamento surpreendente lhe ocorreu: será que poderia ser o resultado de uma cirurgia, uma abertura feita no crânio para fins curativos?

Ele concluiu que não havia dúvida de que estava lidando com "um caso claro de trepanação", uma técnica antiga de perfuração craniana.

"A senhora Zentino gentilmente me cedeu a peça para pesquisa. Ela foi analisada pelos melhores cirurgiões dos Estados Unidos e da Europa, sendo considerada por todos como a evidência mais notável do conhecimento de cirurgia por parte de povos nativos já descoberta neste continente. A trepanação é um dos processos cirúrgicos mais difíceis", descreveu Squier em seu livro.

Mas não foi tão simples.

O relato do americano, publicado em 1877, omitiu um episódio que ocorreu logo após seu retorno, em uma reunião da Academia de Medicina de Nova York. Ao ver o crânio, os presentes se recusaram a acreditar que alguém havia sobrevivido a um procedimento de trepanação conduzido por um indígena peruano.

A ideia de que os antigos incas pudessem realizar uma cirurgia tão delicada sem anestesia ou ferramentas de metal parecia simplesmente absurda.

A taxa de sobrevivência de trepanações realizadas pelos cirurgiões mais habilidosos nos melhores hospitais da época na região raramente chegava a 10%.

O que eles não levaram em conta é que o percentual era semelhante ao observado em outros tipos de procedimento. A teoria microbiana, que revolucionou o tratamento e diagnóstico de doenças, ainda não vigorava nessa época, e muitos pacientes acabavam morrendo de infecção.

Squier não se deu por vencido. Decidiu levar o crânio para a França, para que fosse examinado pela maior autoridade europeia em crânio humano, Paul Broca, professor de patologia externa e cirurgia clínica na Universidade de Paris e fundador da primeira sociedade antropológica.

Broca ficou mundialmente famoso em 1861, ao descobrir o primeiro ponto de linguagem conhecido no cérebro humano, agora chamado de área de Broca, o primeiro caso de localização cerebral de uma função psicológica.

Ao examinar o buraco quadrado, o cientista concluiu que ele havia sido feito de forma deliberada. Depois de analisá-lo ao microscópio, encontrou evidências de crescimento ósseo ao redor da perfuração — o que indicava que o paciente havia sobrevivido à operação.

Mesmo diante do prestígio de Broca, a Sociedade Antropológica de Paris se mostrou cética às suas conclusões.

Mas alguns anos depois, sua interpretação seria finalmente confirmada, com a descoberta na região central da França de crânios com orifícios arredondados, cicatrizes nas bordas e discos ósseos do mesmo tamanho (talvez usados ??como amuletos) pertencentes ao Neolítico — o que confirmava que, já naquele período, se praticava a trepanação com sucesso.

Os cientistas não tiveram escolha a não ser considerar a possibilidade de que haviam subestimado civilizações mais antigas a esse respeito até então.

O crânio inca estimulou uma mudança de postura nos antropólogos, que começaram a vasculhar suas próprias coleções e examinar buracos que haviam sido interpretados no passado como resultado de ferimentos de guerra, acidentes ou ataques de animais. E encontraram mais crânios trepanados, alguns dos quais datados de 8.000 a.C.

Hoje sabe-se que era uma prática difundida e que diferentes culturas ao redor do mundo usavam uma variedade de ferramentas para cortar crânios: pedras afiadas, ossos de animais, ferros em brasa e até dentes de tubarão.

No caso do Peru, os cemitérios geralmente contêm um "tumi" — uma faca cerimonial de metal curva —, que parece apropriado para realizar o procedimento.

Estudos indicam ainda que esses cirurgiões da Antiguidade conseguiam inclusive prevenir infecções. Uma pesquisa feita em 66 crânios antigos trepanados mostrou que apenas três tinham sinais de infecção.

O resultado é semelhante ao de um relatório produzido em Londres na década de 1870. Enquanto 75% dos pacientes neurocirúrgicos na cidade inglesa morriam, na Nova Guiné, onde os cirurgiões ainda perfuravam crânios com métodos tradicionais, a taxa de mortalidade era de 30%.

O que não se sabe ao certo é por que culturas antigas praticavam a trepanação, já que não havia nada escrito sobre o procedimento.

Broca sempre argumentou que eles trepanavam os crânios para liberar o que acreditavam ser espíritos malignos que estavam presos dentro do cérebro. Ele afirmava que essa associação era comum, especialmente em casos envolvendo ataques epiléticos ou alucinações.

Foi algo que de fato aconteceu na Europa, mas não há evidências de que tenha ocorrido também em um passado mais distante.

Squier e outros arqueólogos sempre questionaram as teorias que remetem ao sobrenatural.

Eles argumentavam que os antigos neurocirurgiões estavam fazendo exatamente o que pareciam estar fazendo: tratando ferimentos na cabeça, principalmente de quedas e resultantes de combates.

A pesquisa moderna aponta mais nessa direção, sobretudo no caso dos incas.

Crânios com perfurações foram encontrados mais em homens do que em mulheres, o que é interpretado como resultado do fato de que havia mais guerreiros do sexo masculino do que feminino.

Esses orifícios geralmente ficam no lado esquerdo do crânio, onde um oponente destro atacaria com sua arma.

As trepanações teriam sido uma forma de limpar as feridas e evitar que o sangue se acumulasse.

A superstição pode ter desempenhado um papel nas primeiras trepanações. Mas também é possível que aqueles antigos neurocirurgiões usassem o procedimento para salvar a vida das pessoas, como seus colegas ainda fazem hoje.

- Este texto foi publicado em https://www.bbc.com/portuguese/geral-63849364

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