Pesquisa do Ministério Público, em parceria com a Ufal, revelou que profissionais sofrem assédio e silenciamento nas instituições da segurança pública de Alagoas. Tenente-coronel Camila Paiva, do Corpo de Bombeiros de Alagoas, foi a primeira oficial mulher na corporação
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Arquivo Pessoal
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A linha do tempo do Corpo de Bombeiros Militar de Alagoas tem dois grandes momentos. Um deles foi a sua criação, em 1947, e um outro que só veio após 55 anos, quando a instituição passou a permitir mulheres em cargos de alta hierarquia, abrindo concurso público para oficial com vagas destinadas a elas em 2002. Duas décadas depois, a primeira mulher a se tornar oficial na corporação é voz ativa contra o assédio nos quartéis.
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(Esta reportagem faz parte de uma série especial do g1 para o Dia das Mulheres, celebrado nesta terça-feira, 8 de março, sobre Mulheres Pioneiras. Veja a série completa aqui)
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A tenente-coronel Camila Paiva, que se destaca na luta das mulheres da Segurança Pública por reconhecimento e direitos, chegou a sofrer ameaças, mas não desistiu.
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“Eu decidi lutar contra esse machismo, contra as consequências do machismo, do patriarcado, que é justamente o assédio, e fazer a minha voz ser ouvida. Aproveitar e utilizar o meu local de ser um oficial superior de poder falar por muitas que não podem, porque muitas vezes são perseguidas e têm medo. Por isso que eu decidi utilizar esse espaço para lutar por essa causa”, afirma a tenente-coronel.
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Atualmente, ela integra a Secretaria de Segurança Pública (SSP-AL) e preside a Comissão Mulher Segura desde sua criação, em 16 de março de 2021. Seu papel, explica, é desenvolver políticas públicas de prevenção e combate à violência contra a mulher - tanto na sociedade quanto na segurança pública, porque "elas não deixam de ser mulheres por estarem usando farda".
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"Conseguimos propor medidas de prevenção e combate à violência de gênero dentro das instituições de segurança pública. O secretário [de Segurança] Alfredo Gaspar deu todo apoio e a gente apresentou as medidas para os gestores e foi publicado no Diário Oficial no ano passado. Agora, a gente está acompanhando para que essas medidas realmente se tornem efetivas”, afirma.
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Entre as medidas propostas pela Comissão da Mulher Segura para coibir assédios e violência contra as mulheres nas instituições da Segurança Pública de Alagoas, as principais são:
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ciclos de palestras para todos os servidores, superiores ou subordinados
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canal de denúncia no site institucional do órgão
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incluir no currículo dos cursos carga horária para tratar sobre o tema
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encaminhamento do servidor que praticou ato de violência/assédio para ações educativas
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notificação de todo processo que envolva assédio e violência contra mulheres servidoras dos órgãos
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"Nós estaremos mais próximas das servidoras para que se sintam mais protegidas e que possam denunciar e se sentir acolhidas. Assediadores não passarão", disse a presidente da Comissão.
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Comissão Mulher Segura da Secretária de Segurança Pública de Alagoas (SSP-AL)
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Arquivo Pessoal
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Denúncias
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Quando as denúncias de assédio nos quartéis chegaram ao Ministério Público de Alagoas (MP-AL), a 62ª Promotoria do MP-AL, responsável pelo controle externo da atividade policial, acolheu as profissionais que passaram anos silenciadas.
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Em parceria com a Faculdade de Direito da Universidade Federal de Alagoas (Ufal), por meio do grupo de pesquisa Carmim Feminismo Jurídico, a promotoria realizou uma pesquisa inédita no estado (veja os principais resultados na tabela ao final do texto).
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O levantamento revelou que "as mulheres da Polícia Militar, do Corpo de Bombeiros Militar, da Polícia Civil, da Perícia Oficial e da Polícia Penal vivenciam cotidianamente situações de assédio moral e assédio sexual, mas tendem a silenciar, diante da inexistência de estruturas de apoio especializado nas instituições para acolher as vítimas e ajudá-las a adotar as providências possíveis, responsabilizando os assediadores”.
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Professora da Ufal, Elaine Pimentel, tenente-coronel Camila Paiva, do Corpo de Bombeiros de AL, e promotora de Justiça Karla Padilha
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Arquivo Pessoal
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Coordenadora do grupo de pesquisa, a professora e pesquisadora Elaine Pimentel explicou que, além de levantar os dados, a pesquisa, que faz parte do projeto “Mulheres em Segurança: Assédio, não!”, está servindo para a criação de mecanismos de prevenção nas instituições de segurança pública.
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Clique aqui para ter acesso à íntegra da pesquisa
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Além disso, as conclusões foram utilizadas para instruir uma recomendação da Promotoria em como lidar com a situação.
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“O Ministério Público, dentro da sua competência constitucional, recomendou às instituições que criassem estruturas de apoio e, na verdade, de acolhimento e encaminhamento e enfrentamento às práticas de assédio moral e sexual", explica a pesquisadora.
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Segundo ela, já há alguns avanços na Polícia Militar e a Polícia Penal também já está se articulando.
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"Todos eles, de alguma maneira, estão construindo esse ambiente realmente. E um ambiente físico ligado à sua ouvidoria, ao Centro de Assistência Social, mas que tenha profissionais do quadro psicossocial, que façam a escuta, o acolhimento, a orientação até que essa mulher decida em algum momento se é o caso de fazer a denúncia ou não e em que termos isso vai ser feito, porque entendemos que existe um processo de silenciamento”, avalia a professora Elaine.
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A pesquisadora afirma ainda que o que leva uma mulher vítima de assédio a não tocar no assunto é o medo, a vergonha, a possibilidade de ser culpada pela sociedade por uma ação da qual foi vítima.
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“Isso é muito cruel. A gente entende que é preciso primeiro ouvir essa mulher para quebrar o silêncio e decidir qual caminho vai percorrer, se é o caminho do enfrentamento pelas vias administrativas, pelas vias penais. A gente espera que as instituições tenham quadros permanentes para esse tipo de enfrentamento e possam efetivamente criar uma cultura de respeito”, diz.
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Luta por respeito
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Campanha incentiva denúncias de assédio contra mulheres no Corpo de Bombeiros e PM de AL
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A oficial Camila Paiva conta que levou anos para entender seu papel contra a violência de gênero dentro da instituição. Assim como os homens, foi admitida por meio de concurso público, mas precisou lutar para ter tratamento e respeito equivalentes. A batalha começou ainda durante o curso de formação de oficiais.
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“Eu passei com apenas 18 anos. Então, era uma menina. Fui para lá como primeira colocada. Aí, já vieram muitos desafios, porque a gente [a mulher] sempre é questionada, se vai ter coragem, se vai ter capacidade. O exemplo era o homem, a referência era o homem, porque as instituições militares eram feitas pelos homens e para os homens. Então, era isso que era ensinado a nós, mulheres", relembra.
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Até as vaidades mais simples eram desencorajadas. "Eu fui formada assim e passei muitos anos acreditando que tinha que ser assim. Que não podia usar batom vermelho, porque era vulgar, que não poderia ter determinado comportamento, que não poderia ser afetiva. Qualquer característica que remetesse ao feminino era vista como uma fragilidade, como uma fraqueza".
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Assédio
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Pesquisadores da Universidade Federal de Alagoas (UFAL) explicam que é preciso mais que abrir vagas em concursos públicos para haver uma integração efetiva das mulheres ao quadro das forças de segurança pública, já que é no cotidiano de trabalho que se revelam as opressões de gênero que favorecem as práticas de assédio moral e sexual.
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“Eu comecei a entender que eu poderia ser uma autoridade, ser uma liderança, exercer o meu papel de comandante sendo feminina, sendo do jeito que eu era e não obrigatoriamente seguir um padrão. Eu passei dez anos da minha vida vivendo como a corporação esperava, como a sociedade esperava e eu terminei me distanciando tanto de mim mesma para agradar, que entrei em uma depressão profunda", lamenta a tenente-coronel Camila.
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"Ao sair dessa situação, eu decidi ser quem eu era e continuei sendo respeitada, continuei tendo a autoridade reconhecida e sendo uma profissional independentemente das minhas escolhas enquanto mulher. E, desde então, eu entendi como era importante compartilhar isso com outras mulheres”, afirma.
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Tenente-coronel Camila Paiva, do Corpo de Bombeiros de Alagoas, foi a primeira oficial mulher na corporação
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Arquivo Pessoal
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Assédio no trabalho
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O assédio contra mulheres no trabalho não é exclusivo na área de segurança pública. Para se ter uma ideia, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o ambiente de trabalho e o transporte público são mais hostis e propícios ao assédio às mulheres do que festas e baladas.
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Em todo o país, 8,9 milhões (12,8%) receberam cantadas ou comentários desrespeitosos no ambiente de trabalho e 5,5 milhões de mulheres (7,9%) foram assediadas em transportes público, como ônibus, metrô ou trem.
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Veja na tabela abaixo os dados relativos a profissionais da segurança pública:
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Casos de assédio entre profissionais da segurança pública
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Fonte: G1.