Uns perderam as janelas; outros, as portas, e há aqueles cujas paredes desabaram, deixando apenas arcos de pedra. Ficaram na memória os varridos do mapa das cidades pela ação humana e, muitas vezes, alvo das forças da natureza, especialmente nos períodos de chuva. Mas, na paisagem de Minas, resistem heroicas construções dos tempos coloniais, imperiais ou dos primórdios republicanos. Até quando, não se sabe.
Neste ano em que o Brasil celebra o bicentenário da Independência e perde joias arquitetônicas como o
Casarão Baeta Neves, em Ouro Preto, destruído por um deslizamento de terra em 13 de janeiro, primeiro prédio neocolonial de Ouro Preto, do fim do século 19, passa da hora de preservar seculares testemunhas da história, marcos da vida em sociedade e ícones do patrimônio cultural.
Em Santa Luzia, na Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH), o imponente Solar da Baronesa, na Rua Direita, no Centro Histórico, faz belo contraste com o céu, agora, azulado num janeiro de tantas chuvas. No melhor estilo “quem vê cara não vê coração”. O sobrado que foi residência, colégio, sede da prefeitura municipal, esteve na mira de ser o Museu da Mulher Mineira e, recentemente, sediava a Secretaria Municipal de Cultura, encontra-se vazio.
Em dezembro, a juíza da 2ª Vara Cível de Santa Luzia, Marina Souza Lopes Ventura Aricodemes, acatou pedido do Ministério Público de Minas Gerais e determinou a interdição do prédio pelo risco de desabamento e incêndio.
Dá tristeza ver a construção do século 19 sem atividade, inerte, com portas fechadas e algumas bandeiras de janelas que balançam ao vento. “O Solar da Baronesa é testemunha da escravidão, da arte, das relações sociais e de muitos outros fatos históricos. O médico Márcio de Castro Silva (1931-2015), ex-presidente da Associação Cultural Comunitária de Santa Luzia, dizia que o casarão guarda o DNA da nossa cidade”, diz o atual dirigente da entidade, Adalberto Andrade Mateus.
A edificação foi obra do primeiro barão de Santa Luzia, Manoel Ribeiro Vianna (1768-1844), marido de Maria Alexandrina de Almeida (1791-1879), “daí o nome Solar da Baronesa”.
O Solar da Baronesa foi a principal referência do arraial de Santa Luzia no século 19. “Quando os viajantes europeus aqui chegavam, apresentavam suas credenciais aos barões luzienses. Perder a edificação por falta de ação será um fracasso após tantas lutas pela preservação do patrimônio cultural local. Em 2006, a Associação Cultural Comunitária de Santa Luzia entregou o prédio completamente restaurado à comunidade, após o investimento superior a R$ 1 milhão”, completa Adalberto Mateus.
Intervenções em Santa Luzia
Na mesma rua, distante cerca de 400 metros, na Praça da Matriz, há um exemplo positivo de preservação. Trata-se da obra de restauração em andamento (estrutura e cobertura) do Solar Teixeira da Costa/Casa da Cultura-Museu Aurélio Dolabella, imóvel com tombamento federal, estadual e municipal.
A Prefeitura de Santa Luzia informou que a intervenção no imóvel, todo cercado com tapumes, vai durar dois anos e meio, com recursos do município. A primeira etapa, que inclui reforço estrutural, custará R$ 2,1 milhões e a execução deve se estender por nove meses.
Segundo a Prefeitura de Santa Luzia, o Solar da Baronesa está em fase de licitação. Em nota, as autoridades informam que “o projeto aprovado, neste momento, no Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais (Iepha) e no Conselho Municipal de Cultura, é o escoramento estrutural”.
Patrimônio no CTI
Entre os imóveis que estariam numa espécie de “CTI do Patrimônio”, há construções públicas e particulares, com estrutura de pedra ou de pau-a pique, demandando, sempre, cuidados e atenção urgentes. Em Sabará (RMBH), uma das primeiras Vilas do Ouro de Minas, as chuvas causaram mais danos às ruínas do Casarão Melo Viana, na Rua Professor Francisco Lopes de Azeredo (antiga Rua da Ponte Pequena), no Centro Histórico.
Propriedade particular, o terreno está coberto pelo mato, mas impossível não reverenciar a beleza da estrutura de pedra e viajar ao passado observando as fotos antigas.
“A partir de meados do século passado, Sabará perdeu construções importantes dos séculos 18 e 19. Infelizmente, muitas que ficaram de pé estão abandonadas, num cenário que desvaloriza nosso patrimônio cultural”, afirma o pesquisador da história local, José Arcanjo do Couto Bouzas, morador de Sabará e especializado em arte e cultura barroca.
Diante das ruínas da edificação construída no fim do século 18 e início do 19 – agora cercada de tapumes, colocados pela prefeitura local, “para proteção dos pedestres e veículos que transitam pela rua”, conforme informação oficial –, Bouzas conta que o sobrado foi construído pelo coronel Pedro Gomes Nogueira (1790-1858).
O militar era vereador da Vila Real de Nossa Senhora da Conceição de Sabará e, em 1831, propôs e conseguiu criar a Guarda Nacional da Comarca do Rio das Velhas. Junto ao padre Mariano de Souza Silvino, provedor da Santa Casa, criou uma companhia de teatro para administrar a então decadente Casa da Ópera sabarense, atual Teatro Municipal.
“O coronel esteve ao lado dos liberais na Revolução de 1842 e depois passou para o lado dos conservadores de Sabará, aliando-se ao coronel Manoel Antônio Pacheco, futuro de Barão de Sabará, e José Joaquim de Meireles Freire, Barão de Curvelo, no combate àquele movimento insurrecional”, acrescenta Bouzas.
O antigo prédio sediou uma das duas lojas maçônicas existentes em Sabará, a Secreta do Kaquende, da qual Pedro Gomes Nogueira foi grão-mestre. Ainda no século 19, o imóvel foi comprado pelo comendador Manoel Pereira de Melo Viana. Comerciante de expressão à época, Manoel teve 10 filhos, entre eles Fernando de Melo Viana (1878-1954), governador de Minas na década de 1920 e vice-presidente do Brasil (de 1926 a 1930). Foi deposto e exilado juntamente com o então presidente Washington Luís (1869-1957), por Getúlio Vargas (1882-1954), na Revolução de 1930.
Desprezo pela história
Do outro lado do Rio Sabará, afluente do Rio das Velhas, no fim da Rua Direita, fica um sobrado particular e com visíveis sinais de abandono. No imóvel, segundo Bouzas, morou Francisco Martins Marques (1789-1847), capitão da Guarda Nacional e prior da Ordem Terceira do Carmo.
“No século 20, a casa foi do médico Sílvio de Paula Pereira (1916-1997), provedor da Santa Casa, prefeito na década de 1950 e figura muito querida na cidade.” Antes de Sílvio, morou na casa outro médico, Valério Rezende, nascido em 1899.
Além de trabalhar na Santa Casa, doutor Sílvio era médico da família, e muitas vezes era transportado no lombo de burro para atravessar o rio e atender doentes. Ficamos preocupados com o patrimônio, pois cada casa mantém viva nossa história”, diz Bouzas.
Editais buscam verba para preservar
Caminhando pelas cidades do Circuito do Ouro, impossível não se preocupar com a situação de muitos casarões que contam a história de Minas. A queda da encosta do Morro da Forca sobre o Casarão Baeta Neves, em Ouro Preto, foi considerada “uma perda para a humanidade” pela direção da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), responsável pelo reconhecimento da cidade Patrimônio Mundial.
Preocupado com a situação em Minas, o secretário estadual de Turismo e Cultura (Secult), Leônidas Oliveira, faz duas recomendações. A primeira, dirigida a toda a população, é ficar atento aos sinais, durante o período de chuvas e fora dele, monitorando a construção e o entorno para comunicar imediatamente à Defesa Civil dos municípios se houver alguma alteração. No caso de imóveis tombados pelo Instituto do Patrimônio Histórico ou Artístico Nacional (Iphan) ou Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais (Iepha), é preciso avisar as equipes em serviço.
Leônidas Oliveira destaca a necessidade de manter a limpeza das calhas, de fazer a troca de telhas quebradas e impedir as infiltrações. “A cobertura das edificações é fundamental para se evitarem problemas”, disse o secretário. No caso específico de Ouro Preto, ele afirmou que foi criado um grupo de trabalho para atuar em três eixos: segurança, salvaguarda e proteção.
“Na segurança, haverá investimento de R$ 36 milhões do governo federal em parceria com o governo de Minas Gerais e a Prefeitura de Ouro Preto, para contenção de encostas. No segundo momento, nós vamos salvaguardar o casarão, fazendo uma arqueologia da arquitetura buscando elementos que sobreviveram a essa tragédia, para futura tomada de decisões. Finalmente, a promoção de Ouro Preto como destino de patrimônio histórico, cultura e mineiridade.”
Leônidas Oliveira lembrou que Minas tem 62% do patrimônio histórico tombado do Brasil, importante agente de promoção turística, e citou o recém-lançado plano Restaura Minas, para “maior solidez” da preservação da memória no estado. “O Restaura Minas é dedicado à restauração do nosso patrimônio. Com as tragédias provocadas pelas chuvas, tivemos bens afetados, o que representa um risco para nossa memória patrimonial. Esse plano se desdobra em partes importantes, como editais e investimentos próprios”, destacou.
Em editais, serão destinados R$ 10 milhões pelo Fundo Estadual de Cultura (FEC); R$ 40 milhões em isenção do ICMS para chamamento público de empresas que queiram investir em projetos de restauração do patrimônio histórico; R$ 26 milhões para espaços tombados do Sistema Estadual de Cultura, como os museus de Guimarães Rosa (Cordisburgo), Casa Guignard (Ouro Preto) e Casa de Alphonsus de Guimarães (Mariana); e mais R$ 6 milhões para obras de restauro de prédios históricos da Fundação de Arte de Ouro Preto (Faop).
Três perguntas para...
Leonardo Castriota, arquiteto, vice-presidente do Conselho Internacional de Monumentos e Sítios (Icomos)
Para muitas pessoas, casarões históricos não passam de “casas velhas”, independentemente de serem ou não tombados. Por que ainda existe essa mentalidade?Estudo realizado há alguns anos por Mônica Fisher (arquiteta e mestre em sociologia pela Universidade Federal de Minas Gerais/UFMG) analisando a ligação dos moradores de Mariana (Região Central de Minas) com o chamado patrimônio mostrou que a maioria dos habitantes atribuía um valor diferenciado a cada uma das porções da cidade que habitavam. Valorizavam a cidade, em geral, como um lugar de proximidade, de relação com os vizinhos e amigos, tinham um elo emocional com o local. Não a valorizavam, em si, como um patrimônio histórico e artístico, no sentido que usamos; pelo contrário, eles viam as casas como velhas, e as ruas como entulhadas. Sua valorização só coincidia com as dos técnicos do patrimônio no que se referia às igrejas, que viam como verdadeiros monumentos e que deveriam ser preservadas. O estudo mostrou que os moradores dissociavam sua vivência (normalmente prazerosa) do ambiente da cidade histórica e da preservação do ambiente físico ali existente. Nesse sentido, diria que eles são acometidos por aquela “síndrome do novo”, que assola o Brasil de modo geral, onde se identifica o novo com o melhor e o mais apropriado para a vida, condenando-se o "velho" ao descarte. Com isso, o Brasil tem sistematicamente apagado suas memórias e destruído o que de bom e belo se produziu, substituindo-o por uma arquitetura e um urbanismo pobres e restritos à mera funcionalidade – e, às vezes, nem isso. Nossas cidades nunca foram tão feias (e mesmo disfuncionais), tornando-se meros territórios para se exercer o lucro em sua visão máxima.
Qual a melhor forma de se preservarem as edificações coloniais, imperiais ou do início do período republicano, diante da fragilidade de sistemas construtivos de época, com uso de pau-a-pique ou adobe?Diria que a grande questão envolvendo a preservação não é técnica, mas política. Explico: hoje já temos todas as técnicas para preservar (e mesmo reutilizar) sistemas construtivos e materiais tradicionais. A questão é que esses não são, de um modo geral, valorizados. Prefere-se arrancar belos pisos em ladrilho hidráulico e substituí-los por pisos como o porcelanato. A atitude dos órgãos de preservação também não ajuda: fixam sua atenção em detalhes pouco importantes e impedem uma conservação saudável das cidades, enquanto pouco fazem para articular a preservação ao bom uso das cidades e ao seu desenvolvimento. Vi isso claramente quando atuamos no Serro (MG): ali a população via o Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) como um paquiderme lento e perigoso, que não se relacionava com a vivência cotidiana da cidade nem com o seu incrível patrimônio vivo. Outro ponto muito complicado é a dissociação entre patrimônio material e patrimônio imaterial, não se trabalhando minimamente a relação entre eles.
O senhor considera oportuno o incentivo público para ajudar os proprietários na preservação?Naturalmente. Quando se considera que algo é patrimônio, o estado se torna corresponsável por sua preservação. Não basta tombar: é preciso conservar, valorizar, reutilizar. Para isso, vários mecanismos poderiam ser utilizados. O primeiro deles seria uma integração absoluta das políticas de preservação com as políticas de planejamento urbano, e isso não só do ponto de vista retórico, como se costuma fazer. É preciso criar política de conservação e revalorização de áreas da cidade, com o controle de uso e ocupação do solo, mas também com a valorização de certas atividades, estímulo a novos usos, animação cultural, entre outros. A política de patrimônio desvinculada as outras políticas para as cidades pode pouco; articulada com elas, no entanto, pode se tornar importante ferramenta de desenvolvimento. Veja, por exemplo, como se equaciona mal no Brasil as políticas de habitação voltadas para centros históricos. São centenas de milhares de imóveis históricos que poderiam ajudar a diminuir nosso déficit habitacional. No entanto, o poder público nunca pensa a longo prazo, e se contenta em anunciar, de quando em quando (principalmente quando há catástrofes), medidas populistas e completamente ineficazes. Estamos atrasadíssimos no Brasil no que se refere a conservação urbana.